A FÁBRICA

Maio 14 2006

Recentemente, quando regressava a casa depois de um dia de trabalho, dei por mim a ouvir um programa cujo assunto versava sobre a existência ou ausência de arrependimentos de actos cometidos no passado de cada um. Como invariavelmente acontece quando regressamos a casa, ou estamos nos momentos em que fazemos uma recapitulação do dia e do que, em consequência, temos de fazer no seguinte, ou então estamos mergulhados em elucubrações que derivam das questões que nos apoquentam. Foi o que sucedeu com a discussão lançada nas ondas hertzianas. Interessou-me o tema.
Por entre as conversas, surgiu um ouvinte em particular que, com uma convicção que roçava a arrogância, disse que não se arrependia de nada do que tinha feito. Esta postura resulta de uma de duas coisas. Ou estamos perante alguém que acredita que em cada encruzilhada com se deparou não interessa o caminho seguido, que o resultado final é sempre o mesmo, portanto, um partidário da teoria da predestinação, ou então teve uma vida tão simples que qualquer opção que se colocasse no seu percurso, além de não diferirem muito na sua essência, os resultados também não eram assim tão diferentes, ao ponto de se considerados relevantes no seu contexto existencial.
Será esta última o tipo de vida que desejamos?

Uma onde as opções são quase iguais em conteúdo e, necessariamente, em consequências?
Uma vida rica do ponto de vista existencial não será aquela em que ao serem colocadas as opções se sente o sabor do poder de escolha?
A própria existência de opções significativas, férteis em provocar dúvidas sobre qual a melhor, não será por si só sinal de uma vida preenchida?
A incerteza nas encruzilhadas provoca descargas de adrenalina e cada um escolhe de acordo com um critério subjectivo. Somos, enquanto seres humanos, o resultado de cada uma das opções tomadas e vamos crescendo, colocando pedra em cima de pedra, como se construíssemos uma casa para albergar a nossa alma. Este processo contínuo torna o passado parte integrante e indissociável do nosso Ser. Não se arrepender de nada é uma alienação completa. Não se pode é viver agarrado aos erros e permitir qualquer tipo de condicionamento. A vida contínua, por muito que isto cheire a lugar comum.
Escolher, sobretudo quando o fazemos mal, deveria significar apenas amadurecimento, uma melhoria enquanto ser humano. Não escolher, quando existe possibilidade de o fazer, é que é motivo de arrependimento. E estar arrependido não significa viver agarrado ás opções que se revelaram erradas. Significa, apenas e só que, nas mesmas circunstâncias, a experiência passará a ditar as regras. A inércia perante a vida inevitavelmente será o que recordaremos com insustentável nostalgia, o arrependimento resultante unir-se-á a alma como um qualquer vulgar parasita, que a destruirá todos os dias um pouco por não termos seguido, por cobardia, o caminho que, de alguma forma, sempre sentimos ser o nosso.
O que seria de nós sem o passado?

A resposta é simples.Não Seríamos.
Umberto Eco no seu livro, “A Misteriosa Chama da Rainha Loana”, retrata a vida de um homem que perdeu a memória de si próprio e que, para a recuperar, encetou uma viagem até aos locais do seu passado em busca dos acontecimentos com eles relacionados e que o fizeram ser quem era. Em certa medida isso acontece naqueles momentos em que nos impõe com firmeza militar a organização de alguns dos recônditos cantos das nossas casas, onde vamos empilhando objectos que, em determinada altura, tiveram um significado especial, e que mais não são do que as provas materiais dos sentimentos que lhes estão associados. São as pedras que fomos colocando, e que nos fizeram o que somos. Obviamente que o pretendido é que os encaminhemos para um destino algo definitivo. No entanto, esta exigência é profundamente penosa, sendo muitas vezes uma impossibilidade desfazer-nos de um objecto, tão forte é a ligação criada e que, também, é difícil de explicar.
A razão para esta hesitação não é o objecto em si, é a viagem que feita ao longínquo tempo em que o tornamos nosso, e que fez aquele momento que se revive ser mais importante que os restantes. São os sentimentos inerentes que afloram. É o mar de sensações provocadas por algo que vagueava por entre os infinitos ecos do passado, impregnadas no cérebro por mecanismos incompreensíveis, e que foi nossa decisão imortalizar, à nossa escala. O objecto apenas serve de estímulo à memória, e encerra em si um capítulo importante com, mais ou menos perceptíveis, reflexos no presente. Estes objectos permitem evocar a galeria de recordações que, caminhando lado a lado no tempo connosco, nos permitem reviver, com deleite ou desprezo, o momento que os fez serem especiais. Acredito que sem estes auxiliares de memória, sem estes pedaços da nossa vida, esses momentos seriam como tantos outros, meros segundos sem história.
Há, no entanto, uma pequena ressalva a fazer. Nestas viagens pode ficar-se agarrado a um determinado momento, do qual não nos conseguimos libertar. As origens das psicoses estão no passado, segundo dizia Freud. Encerrar qualquer capítulo da nossa vida que nos tolda a existência é, por isso, a conquista final. Sendo esta apenas uma forma de arrumar e ordenar o caos, é preciso perceber que não há forma de esquecer nada, fazer de conta que não existe. Esse é o peso das pedras que nos constituem São impossíveis de retirar sem que se crie um novo Ser. E isso ninguém quer. Perder a identidade significa perder aquilo que somos. Esse é o desespero da personagem que Umberto Eco retrata no seu livro e que se torna o nosso quando pensamos o que seria se sucedesse connosco.


Filipe Pinto.
publicado por armando ésse às 15:36

Maio 14 2006

Recentemente, quando regressava a casa depois de um dia de trabalho, dei por mim a ouvir um programa cujo assunto versava sobre a existência ou ausência de arrependimentos de actos cometidos no passado de cada um. Como invariavelmente acontece quando regressamos a casa, ou estamos nos momentos em que fazemos uma recapitulação do dia e do que, em consequência, temos de fazer no seguinte, ou então estamos mergulhados em elucubrações que derivam das questões que nos apoquentam. Foi o que sucedeu com a discussão lançada nas ondas hertzianas. Interessou-me o tema.
Por entre as conversas, surgiu um ouvinte em particular que, com uma convicção que roçava a arrogância, disse que não se arrependia de nada do que tinha feito. Esta postura resulta de uma de duas coisas. Ou estamos perante alguém que acredita que em cada encruzilhada com se deparou não interessa o caminho seguido, que o resultado final é sempre o mesmo, portanto, um partidário da teoria da predestinação, ou então teve uma vida tão simples que qualquer opção que se colocasse no seu percurso, além de não diferirem muito na sua essência, os resultados também não eram assim tão diferentes, ao ponto de se considerados relevantes no seu contexto existencial.
Será esta última o tipo de vida que desejamos?

Uma onde as opções são quase iguais em conteúdo e, necessariamente, em consequências?
Uma vida rica do ponto de vista existencial não será aquela em que ao serem colocadas as opções se sente o sabor do poder de escolha?
A própria existência de opções significativas, férteis em provocar dúvidas sobre qual a melhor, não será por si só sinal de uma vida preenchida?
A incerteza nas encruzilhadas provoca descargas de adrenalina e cada um escolhe de acordo com um critério subjectivo. Somos, enquanto seres humanos, o resultado de cada uma das opções tomadas e vamos crescendo, colocando pedra em cima de pedra, como se construíssemos uma casa para albergar a nossa alma. Este processo contínuo torna o passado parte integrante e indissociável do nosso Ser. Não se arrepender de nada é uma alienação completa. Não se pode é viver agarrado aos erros e permitir qualquer tipo de condicionamento. A vida contínua, por muito que isto cheire a lugar comum.
Escolher, sobretudo quando o fazemos mal, deveria significar apenas amadurecimento, uma melhoria enquanto ser humano. Não escolher, quando existe possibilidade de o fazer, é que é motivo de arrependimento. E estar arrependido não significa viver agarrado ás opções que se revelaram erradas. Significa, apenas e só que, nas mesmas circunstâncias, a experiência passará a ditar as regras. A inércia perante a vida inevitavelmente será o que recordaremos com insustentável nostalgia, o arrependimento resultante unir-se-á a alma como um qualquer vulgar parasita, que a destruirá todos os dias um pouco por não termos seguido, por cobardia, o caminho que, de alguma forma, sempre sentimos ser o nosso.
O que seria de nós sem o passado?

A resposta é simples.Não Seríamos.
Umberto Eco no seu livro, “A Misteriosa Chama da Rainha Loana”, retrata a vida de um homem que perdeu a memória de si próprio e que, para a recuperar, encetou uma viagem até aos locais do seu passado em busca dos acontecimentos com eles relacionados e que o fizeram ser quem era. Em certa medida isso acontece naqueles momentos em que nos impõe com firmeza militar a organização de alguns dos recônditos cantos das nossas casas, onde vamos empilhando objectos que, em determinada altura, tiveram um significado especial, e que mais não são do que as provas materiais dos sentimentos que lhes estão associados. São as pedras que fomos colocando, e que nos fizeram o que somos. Obviamente que o pretendido é que os encaminhemos para um destino algo definitivo. No entanto, esta exigência é profundamente penosa, sendo muitas vezes uma impossibilidade desfazer-nos de um objecto, tão forte é a ligação criada e que, também, é difícil de explicar.
A razão para esta hesitação não é o objecto em si, é a viagem que feita ao longínquo tempo em que o tornamos nosso, e que fez aquele momento que se revive ser mais importante que os restantes. São os sentimentos inerentes que afloram. É o mar de sensações provocadas por algo que vagueava por entre os infinitos ecos do passado, impregnadas no cérebro por mecanismos incompreensíveis, e que foi nossa decisão imortalizar, à nossa escala. O objecto apenas serve de estímulo à memória, e encerra em si um capítulo importante com, mais ou menos perceptíveis, reflexos no presente. Estes objectos permitem evocar a galeria de recordações que, caminhando lado a lado no tempo connosco, nos permitem reviver, com deleite ou desprezo, o momento que os fez serem especiais. Acredito que sem estes auxiliares de memória, sem estes pedaços da nossa vida, esses momentos seriam como tantos outros, meros segundos sem história.
Há, no entanto, uma pequena ressalva a fazer. Nestas viagens pode ficar-se agarrado a um determinado momento, do qual não nos conseguimos libertar. As origens das psicoses estão no passado, segundo dizia Freud. Encerrar qualquer capítulo da nossa vida que nos tolda a existência é, por isso, a conquista final. Sendo esta apenas uma forma de arrumar e ordenar o caos, é preciso perceber que não há forma de esquecer nada, fazer de conta que não existe. Esse é o peso das pedras que nos constituem São impossíveis de retirar sem que se crie um novo Ser. E isso ninguém quer. Perder a identidade significa perder aquilo que somos. Esse é o desespero da personagem que Umberto Eco retrata no seu livro e que se torna o nosso quando pensamos o que seria se sucedesse connosco.


Filipe Pinto.
publicado por armando ésse às 15:36

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