A FÁBRICA

Setembro 22 2006

Penso que foi Nietzsche quem disse que nós não gostámos das pessoas mas sim do efeito que o conjunto de reacções que elas suscitam tem, ou seja, é provocada uma espécie de descarga química e o bem-estar gerado no nosso corpo desta forma é o que induz a sensação física de contentamento. É, assim, desfeita a ilusão de que os sentimentos são uma manifestação metafísica, transcendente e espiritual, resumindo-se a uma vulgar reacção química cerebral. É, claramente uma visão redutora do ser humano esta noção de que todos os sentimentos são uma resposta fisiológica, uma simples reacção química a um qualquer estímulo.
É claro que esta teoria não explica os sentimentos de repulsa que temos quer com pessoas quer com objectos quer com acontecimentos e, se o interesse é puramente egoísta, porque é que são, normalmente, os momentos de sofrimento que nos empurram para um abismo emocional, abismo este que na maior parte das vezes se revela com uma intensidade de tal forma sufocante, que os comportamentos de índole egoísta não fazem qualquer sentido, a menos que o masoquismo demente imponha as suas regras, configurando assim um paradoxo.
Não interessa muito para a discussão a teoria, pois eu desconheço-a em absoluto. Reporto-me a uma citação. Interessa-me sobretudo enquadrar os sentimentos num espectro que vai desde a mais notável felicidade até ao mais vil sofrimento. Obviamente tudo resto se situa entre estas duas condições inatingíveis. As possibilidades são, por outro lado, infinitas e os acontecimentos que lhes dão origem são, também, infinitos. Muitos deles induzem contradições que são difíceis de gerir, existindo uma tendência natural para interiorizar as coisas pois, aquilo que esperamos é que as nossas reacções sejam passíveis de serem integradas sem culpas. Os sentimentos antagónicos não permitem que isto suceda. O isolamento é então a solução como resultado da estranha sensação de exclusividade. O desconhecimento da condição humana relativamente ao facto de que estas reacções são recorrentes e comuns, banais até, aumenta o sofrimento.
Para ilustrar esta situação nada é mais intenso que as emoções perante a morte. Quanto mais próxima mais marcante. A morte e sua inevitabilidade são conceitos para os quais é necessária uma resistência emocional elevada. Quando algo semelhante sucede, a alma é invadida pela consciência do nosso próprio fim, de quanto tudo é efémero e transitório.
A renovação das gerações implica, geralmente, a morte dos mais velhos nas famílias e estes acontecimentos são épocas de profundas contradições emocionais. O drama maior nestes casos será certamente a perda dos pais que vai para além da irreversibilidade da situação. A morte de um pai é uma espécie de princípio do fim. Para cada um de nós eles representam a primeira e a última barreira á fatalidade. Se os desígnios geracionais se cumprirem, os próximos na linha da continuidade para a morte são os filhos. Os pais têm, por isso mesmo, um papel que vai para além da paternidade. São pais e delimitam a nossa existência. É como se enquanto eles não morrerem, a morte fosse apenas um conceito com o qual convivemos numa perspectiva algo distante, como se estivéssemos rodeados por uma espécie de domo protector em que a matéria que constitui a sua estrutura fosse uma substância emanada pelos nossos progenitores onde a mortalidade inerente à vida luta por penetrar sem o conseguir até ao dia fatídico.
Esta conjectura faz as pessoas acordarem para se confrontarem com os seus próprios demónios, limites e para a sua condição humana. Assim, o sofrimento gerado por uma perda importante com o fim da ilusão da invulnerabilidade, o penoso quotidiano de contacto com doenças que se alimentam do que resta da vida até a sugarem completamente, o surgimento do sentimento de impotência perante a irreversibilidade, os apelos de quem tem de ficar sem resposta e que se lêem nos olhos de quem os faz com uma clareza desconcertante, são momentos que são responsáveis pelas mais perturbantes contradições.
O desejo da morte do ente querido e que seja rápida e o mais indolor possível, o sentimento de culpa que isto arrasta, torna-se uma espécie de sombra negra que se agarra parasitariamente a quem o sente. O desejo pelo desfecho de uma situação que imbui todos os envolvidos numa escuridão, é exactamente desejar a morte. Quando é alguém de quem gostamos imenso pensamos que este sentimento faz de nós um ser com a alma negra, porque ninguém deseja o mal a quem ama, a menos que o sentimento tenha sido desde sempre uma ilusão. E se o foi, porque a intensidade é semelhante, tudo o que sentimos pelos outros é também duvidoso. Sentimos um vazio tão intenso que é como se tudo se desmoronasse irremediavelmente e fosse necessário reaprender a viver. Se não formos capazes, o futuro insinua-se como um mero exercício de passar dos dias porque de repente perdemos a noção da realidade e do valor dos sentimentos.
Desejar a morte de alguém ao mesmo tempo desejar que viva é algo que aparenta ser inverosímil, mas que de facto não é. Tudo é uma resposta a diferentes estímulos, queremos que vivam porque o amor é real, e queremos que morram porque a razão e a percepção que temos dos acontecimentos nos dizem que a morte é inevitável e se o sofrimento e o definhamento exibidos perante os nossos olhos são tão profundamente desconcertantes então cada um dos sentimentos é igualmente profundo e perturbador.
A alma humana na sua mais exultante exteriorização, os infinitos paradoxos que os sentimentos arrastam consigo e que não temos a capacidade de encaixar porque a racionalização por vezes se revela impossível ou, por mais que tentemos, as nossas capacidades não permitem explora-los com a profundidade necessária. Ficamos a meio do caminho entre a raiz dos sentimentos que nos levam a saber viver com a nossa condição humana e a incapacidade para os verbalizar, incapacidade essa que traz consigo a culpa a cada recordação. Se tudo é uma resposta fisiológica, então uma vez que somos constituídos pela mesma matéria não podemos pensar que os nossos sentimentos são únicos. Este facto deveria servir de paliativo para o mal-estar gerado por algumas das coisas que sentimos. É esta capacidade de sentir que nos mantém vivos e nos diferencia da restante Criação.

Filipe Pinto.
publicado por armando ésse às 22:23

Setembro 22 2006

Penso que foi Nietzsche quem disse que nós não gostámos das pessoas mas sim do efeito que o conjunto de reacções que elas suscitam tem, ou seja, é provocada uma espécie de descarga química e o bem-estar gerado no nosso corpo desta forma é o que induz a sensação física de contentamento. É, assim, desfeita a ilusão de que os sentimentos são uma manifestação metafísica, transcendente e espiritual, resumindo-se a uma vulgar reacção química cerebral. É, claramente uma visão redutora do ser humano esta noção de que todos os sentimentos são uma resposta fisiológica, uma simples reacção química a um qualquer estímulo.
É claro que esta teoria não explica os sentimentos de repulsa que temos quer com pessoas quer com objectos quer com acontecimentos e, se o interesse é puramente egoísta, porque é que são, normalmente, os momentos de sofrimento que nos empurram para um abismo emocional, abismo este que na maior parte das vezes se revela com uma intensidade de tal forma sufocante, que os comportamentos de índole egoísta não fazem qualquer sentido, a menos que o masoquismo demente imponha as suas regras, configurando assim um paradoxo.
Não interessa muito para a discussão a teoria, pois eu desconheço-a em absoluto. Reporto-me a uma citação. Interessa-me sobretudo enquadrar os sentimentos num espectro que vai desde a mais notável felicidade até ao mais vil sofrimento. Obviamente tudo resto se situa entre estas duas condições inatingíveis. As possibilidades são, por outro lado, infinitas e os acontecimentos que lhes dão origem são, também, infinitos. Muitos deles induzem contradições que são difíceis de gerir, existindo uma tendência natural para interiorizar as coisas pois, aquilo que esperamos é que as nossas reacções sejam passíveis de serem integradas sem culpas. Os sentimentos antagónicos não permitem que isto suceda. O isolamento é então a solução como resultado da estranha sensação de exclusividade. O desconhecimento da condição humana relativamente ao facto de que estas reacções são recorrentes e comuns, banais até, aumenta o sofrimento.
Para ilustrar esta situação nada é mais intenso que as emoções perante a morte. Quanto mais próxima mais marcante. A morte e sua inevitabilidade são conceitos para os quais é necessária uma resistência emocional elevada. Quando algo semelhante sucede, a alma é invadida pela consciência do nosso próprio fim, de quanto tudo é efémero e transitório.
A renovação das gerações implica, geralmente, a morte dos mais velhos nas famílias e estes acontecimentos são épocas de profundas contradições emocionais. O drama maior nestes casos será certamente a perda dos pais que vai para além da irreversibilidade da situação. A morte de um pai é uma espécie de princípio do fim. Para cada um de nós eles representam a primeira e a última barreira á fatalidade. Se os desígnios geracionais se cumprirem, os próximos na linha da continuidade para a morte são os filhos. Os pais têm, por isso mesmo, um papel que vai para além da paternidade. São pais e delimitam a nossa existência. É como se enquanto eles não morrerem, a morte fosse apenas um conceito com o qual convivemos numa perspectiva algo distante, como se estivéssemos rodeados por uma espécie de domo protector em que a matéria que constitui a sua estrutura fosse uma substância emanada pelos nossos progenitores onde a mortalidade inerente à vida luta por penetrar sem o conseguir até ao dia fatídico.
Esta conjectura faz as pessoas acordarem para se confrontarem com os seus próprios demónios, limites e para a sua condição humana. Assim, o sofrimento gerado por uma perda importante com o fim da ilusão da invulnerabilidade, o penoso quotidiano de contacto com doenças que se alimentam do que resta da vida até a sugarem completamente, o surgimento do sentimento de impotência perante a irreversibilidade, os apelos de quem tem de ficar sem resposta e que se lêem nos olhos de quem os faz com uma clareza desconcertante, são momentos que são responsáveis pelas mais perturbantes contradições.
O desejo da morte do ente querido e que seja rápida e o mais indolor possível, o sentimento de culpa que isto arrasta, torna-se uma espécie de sombra negra que se agarra parasitariamente a quem o sente. O desejo pelo desfecho de uma situação que imbui todos os envolvidos numa escuridão, é exactamente desejar a morte. Quando é alguém de quem gostamos imenso pensamos que este sentimento faz de nós um ser com a alma negra, porque ninguém deseja o mal a quem ama, a menos que o sentimento tenha sido desde sempre uma ilusão. E se o foi, porque a intensidade é semelhante, tudo o que sentimos pelos outros é também duvidoso. Sentimos um vazio tão intenso que é como se tudo se desmoronasse irremediavelmente e fosse necessário reaprender a viver. Se não formos capazes, o futuro insinua-se como um mero exercício de passar dos dias porque de repente perdemos a noção da realidade e do valor dos sentimentos.
Desejar a morte de alguém ao mesmo tempo desejar que viva é algo que aparenta ser inverosímil, mas que de facto não é. Tudo é uma resposta a diferentes estímulos, queremos que vivam porque o amor é real, e queremos que morram porque a razão e a percepção que temos dos acontecimentos nos dizem que a morte é inevitável e se o sofrimento e o definhamento exibidos perante os nossos olhos são tão profundamente desconcertantes então cada um dos sentimentos é igualmente profundo e perturbador.
A alma humana na sua mais exultante exteriorização, os infinitos paradoxos que os sentimentos arrastam consigo e que não temos a capacidade de encaixar porque a racionalização por vezes se revela impossível ou, por mais que tentemos, as nossas capacidades não permitem explora-los com a profundidade necessária. Ficamos a meio do caminho entre a raiz dos sentimentos que nos levam a saber viver com a nossa condição humana e a incapacidade para os verbalizar, incapacidade essa que traz consigo a culpa a cada recordação. Se tudo é uma resposta fisiológica, então uma vez que somos constituídos pela mesma matéria não podemos pensar que os nossos sentimentos são únicos. Este facto deveria servir de paliativo para o mal-estar gerado por algumas das coisas que sentimos. É esta capacidade de sentir que nos mantém vivos e nos diferencia da restante Criação.

Filipe Pinto.
publicado por armando ésse às 22:23

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