Dentro em breve estarei apesar de tudo bem morto finalmente. Talvez para o mês que vem. Será então o mês de Abril ou de Maio. Porque o ano vai pouco adiantado, mil pequenos indícios mo dizem. Pode ser que me engane e que passe ainda o São João ou até o 14 de Julho, festa da liberdade. Que estou eu a dizer, sou capaz de chegar à Transfiguração, sendo como sei que sou, ou à Assunção. Mas não creio, não creio enganar-me quando digo que esses festejos, este ano, se farão sem mim. É o que sinto, sinto-o há já alguns dias, e acredito na minha impressão. Mas em que é que essa impressão é diferente das que me têm enganado desde que nasci? Não, trata-se de um género de pergunta que já não pega, comigo já não pega, já não preciso de pintar. Morria hoje mesmo, se quisesse, bastava fazer um bocadinho de força, se fosse capaz de querer, se fosse capaz de fazer força. Mas mais vale deixar-me morrer, sem apressar as coisas. Já não quero pesar na balança, nem para um lado nem para o outro. Vou ficar inerte e neutro. Será Fácil. O que interessa é só prestar atenção aos sobressaltos. De resto tenho menos sobressaltos desde que aqui estou. Tenho ainda evidentemente acessos de impaciência de vez em quando. Disso é que tenho de me defender agora, durante quinze dias ou três semanas. Sem exagerar é claro, rindo e chorando sossegado, sem me exaltar. Sim, finalmente vou ser natural, sofrerei mais, e depois menos, sem tirar conclusões, ouvir-me-ei menos, não serei frio nem quente, serei morno, morrerei morno, sem entusiasmos. Não me verei morrer, isso falsearia tudo.
1ª Página do livro, Malone Está a Morrer, de Samuel Beckett, Edições Dom Quixote, 2ª edição, Maio de 2003.
Nota: Considerado um dos maiores escritores e dramaturgos do século XX, Samuel Beckett nasceu a 13 de Abril de 1906, na localidade de Foxrock, perto de Dublin, na Irlanda. Nascido no seio de uma abastada família protestante, não teve uma infância muito feliz e depressa se tornou num jovem infeliz. Inadaptado às regras de uma sociedade que considerava repulsiva, refugia-se na solidão, que faz transparecer em toda a sua obra.
Em 1923 ingressa no Trinity College, de Dublin para fazer a sua formação académica, onde em 1927, se licenciou em línguas modernas, francês e italiano, com uma excelente classificação.
Em 1928, Beckett mudou-se para Paris, onde conheceu James Joyce, e depressa se tornou um seguidor do escritor. Esta amizade será decisiva para a sua carreira literária. Aos 23 anos, escreveu um ensaio em defesa de "Ulisses", a obra-prima de James Joyce, que tinha sido proibida na sua Irlanda natal.
Depois de um estudo sobre Proust, Samuel Beckett, chegou à conclusão que o hábito e a rotina eram o “cancro do tempo”: o tempo, inexorável, ao qual estamos presos. Samuel Beckett, faz questão de nos lembrar, que a cada momento, o fim se aproxima, que a morte espreita, que o jogo irá acabar e nós irremediavelmente, perderemos.
Se temos conhecimento disso, então por que continua-mos à espera? Porquê? Porque devemos saber que enquanto se espera a vida continua e devemos vive-la da melhor forma possível, a cada segundo, compreendendo-a pequena e grandiosa ao mesmo tempo.
Por causa destas conclusões, abandonou o seu cargo no Trinity College e iniciou uma viagem pela Europa, visitando a França, Inglaterra e a Alemanha, onde viveu as mais diversas experiências que depois se traduziram em personagens.
Em 1938 fixou residência em Paris, onde dois acontecimentos o vão marcar para o resto da vida: é gravemente ferido ao ser agredido por um estranho, que lhe desferiu uma facada no peito, e conhece Suzanne Deschevaux-Dusmenoil, o amor da sua vida e com quem se casaria em 1961.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Beckett permaneceu em Paris, onde lutou pela Resistência, até que alguns membros o seu grupo foram presos e Beckett foi forçado a refugiar-se, com a sua mulher na zona conhecida como "França Livre", a parte da França que não tinha sido ocupada, pelas tropas nazistas.
Em 1945, regressou a Paris e iniciou o seu período mais prolífico enquanto escritor. No período cinco anos, entre 1948 e 1953, produziu a sua obra mais significativa. Escreveu "Eleutheria" (1948), "À espera de Godot" (1952), e a trilogia, universalmente aclamada como essencial à compreensão da experiência humana, “Molloy” (1951), “Malone está a Morrer” (1951) e “O Inominável” (1953).
O seu primeiro sucesso, chegou, em 1952 com "À Espera de Godot". Apesar das especulações, a pequena peça onde nada acontece, tornou-se num sucesso repentino e um marco no teatro do absurdo. As personagens desta peça, exemplificam a situação do homem encurralado num mundo de rotina: dois vagabundos, Vladimir e Estrabon, indecisos e inertes, esperam em vão a chegada de um personagem enigmático e misterioso, Godot, símbolo do inalcançável, que de um modo inexplicável, melhorará as suas vidas.
Depois do sucesso de "À Espera de Godot", Samuel Beckett dedica-se a traduzir os seus textos para inglês e volta a escrever nesta língua, construindo, um caso raro na Literatura moderna, uma obra bilingue.
As obras de Beckett traduzem com um grande poder de síntese, toda a condição humana. As questões que são necessárias esclarecer dessa condição são amplamente trabalhadas e poeticamente materializadas. Os personagens das suas obras, reflectem a posição do autor em relação à vida, à morte, aos desejos, aos fracassos e à impossibilidade da felicidade.
O reconhecimento crescente do seu trabalho culminaria com o Prémio Nobel da Literatura, em 1969. Depois disso e apesar de ser aclamado a nível mundial, continuou a escrever até à sua morte, que ocorreu em Paris, a 22 de Dezembro de 1989, vítima de enfisema, contra o qual lutou nos últimos três anos, da sua vida.