«A montanha só está escalada quando chegamos ao cume, mas o importante é regressarmos bem.» O alpinista João Garcia arruma numa frase a persistência, a coragem e outros tantos atributos que pela primeira vez levaram a bandeira de Portugal ao «tecto do mundo». A amputação do nariz, de parte dos dedos das mãos e a perda do companheiro Pascal Debrouwer é a prova de que a expedição não correu bem. A resposta ao desafio de escalar o Evereste, foi dada no livro que João Garcia, alpinista profissional, escreveu, “A mais alta solidão”, e essencialmente para contar a subida e a descida atribulada que custou a vida ao companheiro de expedição, Pascal Debrouwer. O monte Evereste, nos Himalaias, a 8.848 metros de altitude e uma temperatura de 40º negativos. Gorada a tentativa de 1997, por razões logísticas, João Garcia conheceu Pascal, um alpinista belga responsável pela empresa «Montagnes du Monde», que organizava expedições aos locais mais altos do globo. Ambos formaram uma parceria e delinearam as duas expedições ao monte Evereste em 98 e 99, a 8.848 metros de altitude e a uma temperatura de 40º negativos. Os dois alpinistas profissionais moviam-se por um sentimento comum. A vontade em ultrapassar o clima inóspito e instável dos montes Himalaias levou-os a traçar o plano para atingirem o pico do monte Evereste, pela face Norte. Recusaram levar oxigénio artificial, querendo fazer tudo da forma mais ética e correcta, o que segundo João Garcia «torna tudo mais difícil, mas com muito mais valor». Uma prática restringida a uma elite mundial: 7% dos destemidos que subiram ao Evereste fizeram-no neste estilo. Era uma questão de terminar algo que se encontrava incompleto numa vida dedicada à escalada.
A preparação para uma tarefa tão árdua vem de há muito tempo. «Não comecei ontem, comecei há 17 anos, durante os quais já tinha realizado sete expedições a cumes de mais de 8.000 metros. O medo existe mas vamo-nos habituando a pouco e pouco. Ganha-se a endurance e a resistência capazes de enfrentar este tipo de dificuldades», confessa João Garcia, um desportista que praticou triatlo de competição, treinava quatro horas por dia, correu duas maratonas e acima de tudo andava muito montanha, onde por vezes permanecia durante oito horas. A expedição saíu a 4 de Abril de Kathmandu, a capital do Nepal, a 1.600 metros de altitude. Depois, mais à frente, era preciso aclimatizar. Ou seja, fazer uma adaptação progressiva à altitude, através de movimentos ascendentes e descendentes no percurso para o cume. Até ao dia do «assalto final». O homem não foi feito para viver a esta altitude, mas «para nós há um certo fascínio. A muita gente faria medo estar lá em cima a algumas horas de descida. Uma pessoa habitua-se. Até a própria família convive com o facto de eu partir e estar dois meses fora», esclarece João Garcia. A caminho do cume o oxigénio escasseia. Neste ambiente, o corpo humano responde intensificando a produção de glóbulos vermelhos para melhorar o aporte de oxigénio às células. E João Garcia possui características semelhantes à de um atleta de alta competição: «Adapto-me bem às situações adversas, mas não deixa de ser muito cansativo. Acima dos 8.000 metros já estamos numa situação de quatro respirações, um movimento e assim por diante. Quando paramos não conseguimos repor a nossa respiração. Estamos sempre ofegantes 24 por 24 horas.»
No topo branco do Evereste, a pequena bandeira portuguesa foi exibida a 18 de Maio de 1999. João Garcia posou para a posteridade, numa fotografia tirada por Pascal Debrouwer. Agora Faltava descer, e aí a tragédia aconteceu, algo que é frequente naquele meio agreste. O maior problema da grande altitude e das sequelas que trouxe da expedição não é só o frio e o vento. O metabolismo e a respiração aceleram, o ar é tão seco que a simples respiração leva a uma enorme desidratação e a capacidade de raciocínio é reduzida drasticamente. Por dia perdem-se cerca de oito litros de líquido, que é impossível repor na totalidade. Fazer cada litro de água a oito mil metros, com 40 º negativos, demora cerca de meia hora. Três a quatro litros por dia já são um contentamento. Por isso, acima dos oito mil metros convém não estar mais que 24 a 36 horas.«Com a desidratação, o organismo entra imediatamente em saldo negativo, o sangue torna-se mais espesso e a circulação nas extremidades torna-se muito deficiente e é por isso que congelamos», refere o nosso interlocutor. A noite e a intempérie constituíram um bloqueio para alcançar o campo 3, a 8.300 metros. Sem conseguir fazer água, restou apenas a João Garcia manter o corpo quente. «Se me tenho aventurado a descer pela noite, se calhar não regressava.» Mas a determinação fez com que não se juntasse aos mais de 150 escaladores que pereceram no Evereste. Quando chegou ao campo base vinha sozinho. Pascal Debrouwer, o seu companheiro de escalada, não tinha conseguido. Ministraram-lhe injecções de aparina, substância que dilui o sangue e facilita a circulação. Mas o português apresentava tecidos mortos por congelação no nariz e nas pontas dos dedos das mãos. Nos pés formaram-se bolhas em tecidos mal irrigados por congelação e, por mais antibióticos que tomasse, uma infecção oportunista seria bastante grave, sabendo que o calçado é bastante atreito a fungos e micoses, por exemplo. A ajuda para prosseguir caminho surgiu nos sete tibetanos contratados que o carregaram até ao transporte que o levaria a Kathmandu. Sobreviveu.
Saragoça foi a próxima escala. Aí esperava-o José Ramon Morandeira, director da Unidade Mista do Hospital Universitário Lozano Tlesa. Este médico alpinista e também vítima de congelação nos dedos dos pés, encetou as investigações nessa área há cerca de 10 anos e pela sua equipa passaram já mais de 90 casos. Por isso, João Garcia sentiu a segurança de que precisava: «Quando se está numa situação em que estive, sentir que estava bem entregue foi meio caminho andado para o bem-estar psíquico.» Vieram os banhos térmicos com borbulhas de oxigénio e as injecções de aparinas de baixo teor molecular. «Quando cheguei ao hospital os médicos disseram-me para me acalmar e que provavelmente nem perderia nada das mãos. Reconheci que a situação estava difícil, mas queria acreditar que as coisas se resolvessem. Depois de três semanas de tratamento, o meu grande choque foi quando vi a gamografia. Olhei para o monitor e reparei que as minhas mãos só eram detectadas a metade...» O cérebro de João Garcia ainda não «esqueceu» a sensação das unhas e das pontas dos dedos, mas a chamada síndroma fantasma desaparecerá com o tempo. «Este é o pior dos cenários para um escalador, já que as mãos são essencialmente o verdadeiro instrumento de trabalho.» O nariz, os dedos das mãos e os dedos dos pés foram alvo de intervenções cirúrgicas. O «enxerto índio» é o nome da técnica de reconstrução nasal a que João Garcia foi submetido. Agora só falta realizar um enxerto de pele na testa, donde foi retirado o tecido para o nariz. Uma operação que provavelmente vai realizar em Portugal. Para fechar as feridas resultantes da amputação dos dedos das mãos foram executados micro enxertos com tecido extraído de um dos braços. Há cinco ou dez anos pouco teria restado dos dedos, mas o requinte das técnicas actuais salvaram uma parte. «Agora sinto-me como um reformado aos 30 anos, que pode continuar a fazer aquilo de que gosta. Sempre fui uma pessoa muito racional e chego à conclusão de que hei-de desfrutar o alpinismo de outra maneira.» Sem perder a vontade de subir à montanha, pensa voltar aos oito mil metros, mas prevenido. Usará oxigénio nos últimos 500 metros, umas injecções de aparina para favorecer o fluxo sanguíneo, uma hidratação adequada e umas luvas com aquecimento eléctrico. A circulação periférica nas mãos de João Garcia vai demorar dois anos a reconstituir-se. As palmas das mãos de João Garcia estão quentes, mas os dedos são frios, como a inóspita região dos Himalaias, onde conquistou o topo do mundo para Portugal. «Tenho de continuar, pelo menos para dar sentido aos últimos 15 anos da minha vida!»
«Não posso chamar tempestade àquilo que aconteceu. Uma tempestade a 8.800 ou 8.600 metros— foi onde eu bivaquei – é uma coisa terrível. O «jet stream» é o vento de 30.000 pés, que atingem 250 km/h. Ora um homem lá em cima voa nessas condições. Por isso eu não estaria cá se tal acontecesse. Mas houve de facto um aumento gradual do vento, o que acontece sempre à tarde».
«O sol começa a pôr-se, a temperatura começa a esfriar e o ar quente começa a subir pela face norte do Evereste. Isto dificulta muito depois na descida. Temos umas luvas grandes e depois umas mais pequenas, mas há que agarrar uma corda, colocar um mosquetão (espécie de argolas por onde deslizam as cordas)... Tudo isto obriga a meter os dentes nas luvas para não perdê-las, trabalhar e voltar a meter as luvas: são factores que atrasam e que, neste caso, atrasaram mesmo. Depois a noite chegou e ficámos bloqueados, tentando sobreviver. Entretanto, perdi de vista o Pascal. «Devo reconhecer que o facto de ter estado muito tempo em altitude à espera do meu colega fez com que o efeito da congelação se agravasse. Nestas altitudes raciocinamos muito mal, com cerca de 30% das faculdades normais. É como “a bebedeira de altitude”. Só uma grande determinação impede que o escalador se sente e continue a descida.»