Darei essa explicação em dois tempos: direi, primeiro, a que se aplica, isto é, o que deveras se entende por mentalidade de qualquer país, e portanto de Portugal; direi, depois, em que modo se aplica a essa mentalidade.
Por mentalidade de qualquer país entende-se, sem dúvida, a mentalidade das três camadas, organicamente distintas, que constituem a sua vida mental – a camada baixa, a que é uso chamar povo; a camada média, a que não é uso chamar nada, excepto neste caso por engano, burguesia; e a camada alta, que vulgarmente se designa por escol, ou, traduzindo para estrangeiro, para melhor compreensão, por elite.
O que caracteriza a primeira camada mental é, aqui e em toda a parte, a incapacidade de reflectir. O Povo, saiba ou não saiba ler, é incapaz de criticar o que lê ou lhe dizem. As suas ideias não são actos críticos, mas actos de fé ou de descrença, o que não implica, aliás, que sejam sempre erradas.
O que caracteriza a segunda camada que não é a burguesia, é a capacidade de reflectir, porém sem ideias próprias; de criticar, porém, com ideias de outrem. Na classe média mental, o indivíduo, que mentalmente já existe, sabe já escolher – por ideias e não por instinto – entre duas ideias ou doutrinas que lhe apresentem; não sabe, porém, contrapor ambas a uma terceira, que seja própria. Quando, aqui e ali, neste ou naquele, fica uma opinião média entre duas doutrinas, isso não representa um cuidado crítico, mas uma hesitação mental.
O que caracteriza a terceira camada, o escol, é, como é de ver por contraste com as outras duas, a capacidade de criticar com ideias próprias. Importa, porém, notar que essas ideias próprias podem não ser fundamentais. O indivíduo do escol pode, por exemplo, aceitar inteiramente uma doutrina alheia; aceita-a, porém, criticamente, e, quando a defende, defende-a com argumentos seus – os que o levam a aceitá-la – e não, como fará o mental da classe média, com os argumentos originais dos criadores ou expositores dessas doutrinas.
Esta divisão em camadas mentais, embora coincida em parte com a divisão em camadas sociais – económicas ou outras -, não se ajusta exactamente a essa. Muita gente das aristocracias de história e de dinheiro, pertence ao povo. Bastantes operários, sobretudo das cidades, pertencem à classe média mental. Um homem de génio ou de talento, ainda que nascido de camponeses, pertence de nascença ao escol.
Quando, portanto, digo que a palavra “provincianismo” define, sem outra que a condicione, o estado mental presente do povo português, digo que essa palavra “provincianismo”, que mais adiante definirei, define a mentalidade do povo português em todas as três camadas que a compõem. Como, porém, a primeira e a segunda camadas mentais não podem por natureza ser superiores ao escol, basta que eu prove o provincianismo do nosso escol presente, para que fique provado o provincianismo mental da generalidade da nação.
Os homens, desde que entre eles se levantou a ilusão ou realidade chamada civilização, passaram a viver em relação a ela, de uma de três maneiras, que definirei por símbolos, dizendo que vivem ou como os campónios, ou como os provincianos, ou como os citadinos.
Ora a civilização consiste simplesmente na substituição do artificial ao natural no uso e correnteza da vida. Tudo quanto constitui a civilização, por mais natural que nos hoje pareça, são artifícios: o transporte sobre rodas, o discurso disposto em verso escrito, renega a naturalidade original dos pés e da prosa falada.
A artificialidade, porém, é de dois tipos. Há aquela, acumulada através das eras, e que, tendo-a já encontrado quando nascemos, achamos natural; e há aquela que todos os dias se vai acrescentando à primeira. A esta segunda é uso chamar “progresso” e dizer que é “moderno” o que vem dela.
Ora o campónio, o provinciano e o citadino diferenciam-se entre si pelas suas diferentes reacções a esta segunda artificialidade.
No pólo oposto, o citadino não sente a artificialidade do progresso. Para ele é como se fosse natural. Serve-se do que é dele, portanto, sem constrangimento nem apreço. Por isso o não ama nem desama: é-lhe indiferente. Viveu sempre (física ou mentalmente) em grandes cidades; viu nascer, mudar e passar (real ou idealmente) as modas e a novidade das invenções; são pois para ele aspectos correntes, e por isso incolores, de uma coisa continuamente já sabida, como as pessoas com quem convivemos, ainda que de dia para dia sejam realmente diversas, são todavia para nós idealmente sempre as mesmas.
Situado mentalmente entre os dois, o provinciano sente, sim, a artificialidade do progresso, mas por isso mesmo o ama. Para o seu espírito desperto, mas incompletamente desperto, o artificial novo, que é progresso, é atraente como novidade, mas ainda sentido como artificial. E, porque é sentido simultaneamente como artificial é sentido como atraente, e é por artificial que é amado.
Se daqui se concluir que a grande maioria da humanidade civilizada é composta de provincianos, ter-se-á concluído bem, porque assim é.Nas nações deveras civilizadas, o escol escapa, porém, em grande parte, e por sua mesma natureza, ao provincianismo.
Não se estabeleça, pois seria erro, analogia, por justaposição, entre duas classificações, que se fizeram, de camadas e tipos mentais.
Pelas características indicadas como as do provinciano, imediatamente se verifica que a mentalidade dele tem uma semelhança perfeita com a da criança.
Ora o que distingue a mentalidade da criança é, na inteligência, o espírito de imitação: na emoção, a vivacidade pobre; na vontade, a impulsividade incoordenada.
São estes característicos que distinguirão o provinciano do campónio e do citadino.No campónio, semelhante ao animal, a imitação existe, mas à superfície, e não, como na criança e no provinciano, vinda do fundo da alma; a emoção é pobre, porém não é vivaz, pois é concentrada e não dispersa; a vontade, se de facto é impulsiva, tem contudo a coordenação fechada do instinto, que substitui na prática, salvo em matéria complexa, a coordenação aberta da razão.
Comecemos por não deixar de ver que o escol se compõe de duas camadas – os homens de inteligência, que formam a sua maioria, e os homens de génio e de talento, que formam a sua minoria, o escol do escol, por assim dizer.
Temos, é certo, alguns escritores e artistas que são homens de talento; se algum deles o é de génio, não sabemos, nem para o caso importa.
O mesmo provincianismo se nota na esfera da emoção. A pobreza, a monotonia da emoção dos nossos homens de talento literário e artístico, salta ao coração e confrange a inteligência. Emoção viva, sim, como aliás era de esperar, mas sempre a mesma, sempre simples, sempre simples emoção, sem auxílio crítico da inteligência ou da cultura. A ironia emotiva, a subtileza passional, a contradição no sentimento – não as encontrareis em nenhum dos nossos poetas emotivos, e são quase todos emotivos. Escrevem, em matéria do que sentem, como escreveria o Pai Adão, se tivesse dado à humanidade, além do mau exemplo já sabido, o, ainda pior, de escrever.
A demonstração fica completa quando conduzimos a análise à região da vontade. Os nossos escritores e artistas são incapazes de meditar uma obra antes de a fazer, desconhecem o que seja a coordenação, pela vontade intelectual, dos elementos fornecidos pela emoção, não sabem o que é a disposição das matérias, ignoram que um poema, não é mais que uma carne de emoção cobrindo um esqueleto de raciocínio. Nenhuma capacidade de atenção e concentração, nenhuma faculdade de inibição. Escrevem ou artistam ao sabor da chamada “inspiração”, que não é mais que um impulso complexo do subconsciente que cumpre sempre submeter, por uma aplicação centrípeta da vontade, à transmutação alquímica da consciência. Produzem como Deus é servido, e Deus fica mal servido. Não sei de poeta português de hoje que, construtivamente, seja de confiança para além do soneto.
Ora, feitos estes reparos analíticos quanto ao estado mental dos nossos homens de talento, é inútil alongar este breve estudo, tratando com igual pormenor a maioria do escol.
Fernando Pessoa.