A FÁBRICA

Janeiro 29 2007

“Quanto ao poder laico, e livre, da política, é clara uma transferência do poder político para o poder religioso. É sintomático que as grandes discussões a que, desde há tempos, o País assiste tenham subjacente uma jaez militar ou religiosa. Progressivamente é essa a duplicidade institucional que ordena, solidifica. Do último ponto de vista dois exemplos recentes adensam a preocupação já expressa: por um lado a competição política, provinciana, que já se vislumbra e decerto crescerá, à volta da visita do Papa a Portugal. Pelo rumo que o facto leva vamos assistir naquele que devia ser um acontecimento pastoral e moral de extrema importância, a um jogo turvo de influências, para que saiba quem convidou, quem esteve mais minutos com Sua Santidade, quem mais o acompanhou, quem ganhou os seus louros. O segundo tem que ver com o tom ‘Cro-Magnon’ com que a questão do aborto tem sido tratada entre nós. (…) a AD não tem a menor autonomia de discurso, já se não pede de voto, nem de vontade, em relação à Igreja, e limita-se a repetir o que esta diz,a presenciar o que esta proclama. Os socialistas dividem-se entre a sua história e a história que a Igreja quer que eles façam.Só por referência lembre-se, por exemplo, que em França foi uma liberal, assumida como tal, da maioria giscardiana, a senhora Simone Weil quem, contra os mais conservadores e os mais ortodoxos, impôs a lei do aborto. Lá, os socialistas não tiveram dúvidas. Giscard, líder da maioria, não interferiu. Quer isto dizer, uma vez mais, que somos subdesenvolvidos; e que, no caso, andamos atrasados, à direita e à esquerda. A menos que se rejeite a Europa moral e apenas se queira a Europa económica…”.
Paulo Portas, "Civis, Laicos e Europeus", in Tempo, 4 de Março de 1982, [PDF].
“Não tem nada a ver com a Europa um país em que o discurso da social-democracia sobre as questões morais se limita a dizer que o aborto é a restauração da pena de morte. É próprio dos mais conservadores dentro dos conservadores, e sul-americano concerteza. Não tem nada a ver com a Europa que a livre iniciativa seja um palmarés deixado vazio, preterido pelas fáceis e dóceis concessões às corporações fácticas. É próprio dos Estados sobretudo confessionais e não de sociedades civis dinâmicas. Não tem nada a ver com a Europa que se regrida a ponto de substituir o acto livre e consciente, por isso pleno e sublime de escolher uma religião, pela imposição de um princípio de obrigatoriedade, por isso sem elevação, nas escolas, de uma confissão. É próprio do passado.”
Paulo Portas, “A Europa Mora ao Lado”, in Tempo, 12 de Maio de 1982 [PDF].
“Nesta coluna não deixei de fazer notar divergências a uma série de atitudes e propostas que não se coadunavam com princípios modernos de relacionamento entre a sociedade, o Estado e as instituições. Assim se fez quando o Governo anunciou a concessão de um canal de Televisão à Igreja; assim se fez quando surgiu na maioria um discurso primitivo e desinteressante a propósito das questões éticas ou morais, como o aborto, mais afeito a ‘slogans’ que à percepção de um problema que não é fechado; assim se fez, recentemente, a propósito da reintrodução da obrigatoriedade das aulas da religião e moral nas escolas, por considerar-se a escolha religiosa um acto só sublime quando livre.”
Paulo Portas, "O Fascínio de João Paulo", in O Tempo, 20 de Maio de 1982 [PDF].
Fonte:http://barnabe.weblog.com.pt/arquivo/073630.html
publicado por armando ésse às 16:47
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Janeiro 29 2007

“Quanto ao poder laico, e livre, da política, é clara uma transferência do poder político para o poder religioso. É sintomático que as grandes discussões a que, desde há tempos, o País assiste tenham subjacente uma jaez militar ou religiosa. Progressivamente é essa a duplicidade institucional que ordena, solidifica. Do último ponto de vista dois exemplos recentes adensam a preocupação já expressa: por um lado a competição política, provinciana, que já se vislumbra e decerto crescerá, à volta da visita do Papa a Portugal. Pelo rumo que o facto leva vamos assistir naquele que devia ser um acontecimento pastoral e moral de extrema importância, a um jogo turvo de influências, para que saiba quem convidou, quem esteve mais minutos com Sua Santidade, quem mais o acompanhou, quem ganhou os seus louros. O segundo tem que ver com o tom ‘Cro-Magnon’ com que a questão do aborto tem sido tratada entre nós. (…) a AD não tem a menor autonomia de discurso, já se não pede de voto, nem de vontade, em relação à Igreja, e limita-se a repetir o que esta diz,a presenciar o que esta proclama. Os socialistas dividem-se entre a sua história e a história que a Igreja quer que eles façam.Só por referência lembre-se, por exemplo, que em França foi uma liberal, assumida como tal, da maioria giscardiana, a senhora Simone Weil quem, contra os mais conservadores e os mais ortodoxos, impôs a lei do aborto. Lá, os socialistas não tiveram dúvidas. Giscard, líder da maioria, não interferiu. Quer isto dizer, uma vez mais, que somos subdesenvolvidos; e que, no caso, andamos atrasados, à direita e à esquerda. A menos que se rejeite a Europa moral e apenas se queira a Europa económica…”.
Paulo Portas, "Civis, Laicos e Europeus", in Tempo, 4 de Março de 1982, [PDF].
“Não tem nada a ver com a Europa um país em que o discurso da social-democracia sobre as questões morais se limita a dizer que o aborto é a restauração da pena de morte. É próprio dos mais conservadores dentro dos conservadores, e sul-americano concerteza. Não tem nada a ver com a Europa que a livre iniciativa seja um palmarés deixado vazio, preterido pelas fáceis e dóceis concessões às corporações fácticas. É próprio dos Estados sobretudo confessionais e não de sociedades civis dinâmicas. Não tem nada a ver com a Europa que se regrida a ponto de substituir o acto livre e consciente, por isso pleno e sublime de escolher uma religião, pela imposição de um princípio de obrigatoriedade, por isso sem elevação, nas escolas, de uma confissão. É próprio do passado.”
Paulo Portas, “A Europa Mora ao Lado”, in Tempo, 12 de Maio de 1982 [PDF].
“Nesta coluna não deixei de fazer notar divergências a uma série de atitudes e propostas que não se coadunavam com princípios modernos de relacionamento entre a sociedade, o Estado e as instituições. Assim se fez quando o Governo anunciou a concessão de um canal de Televisão à Igreja; assim se fez quando surgiu na maioria um discurso primitivo e desinteressante a propósito das questões éticas ou morais, como o aborto, mais afeito a ‘slogans’ que à percepção de um problema que não é fechado; assim se fez, recentemente, a propósito da reintrodução da obrigatoriedade das aulas da religião e moral nas escolas, por considerar-se a escolha religiosa um acto só sublime quando livre.”
Paulo Portas, "O Fascínio de João Paulo", in O Tempo, 20 de Maio de 1982 [PDF].
Fonte:http://barnabe.weblog.com.pt/arquivo/073630.html
publicado por armando ésse às 16:47
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Janeiro 17 2007

Chamo-me M. e tenho 16 anos. Estou grávida e não quero estar. O desespero apossou-se de mim e não sei o que fazer. Já pensei em matar-me mas eu quero viver. Falar com os meus pais é impensável. O meu pai é um alcoólico incorrigível, nunca trabalhou ou teve uma ocupação digna desse nome. É inútil qualquer esforço de memória que faça para recordar um momento de sobriedade em que ele se tenha revelado algo mais que o animal que me sovava a mim e aos meus irmãos até as lágrimas dissolverem a dor. Em inúmeras ocasiões era mesmo a fraqueza por não termos que comer que tornava tudo mais fácil de suportar. Ficávamos prostrados, num estado de letargia provocado pela fome. Nestas alturas que a pancada era menos dolorosa, porque facilmente perdíamos os sentidos ou tombávamos. Ninguém conseguia gritar, o que lhe retirava o ânimo.
A minha mãe tem uma atitude perante a vida que me lembra os meus amigos quando estão pedrados. Os olhos sempre fixos num ponto imaginário, completamente alheada da realidade, ou quando muito presa ao seu mundo. Existe não existindo, como se a vida dela se desenrolasse num plano diferente do nosso e nós somos apenas objectos translúcidos, sem substância, como que parte de um estranho sonho.
Fiz-me adulta muito nova, nas ruas. Sobre sexo aprendi com os outros. O que ninguém me ensinou ou me descreveu foi o significado do tesão, do desejo que não consigo controlar. Tudo seria mais fácil se fossemos como os bichos que têm as épocas de cio para procriar. Não o faço com qualquer um, mas com quem gosto perco deliberadamente o controlo. As carícias, os beijos, a queca, e é como se aqueles momentos fossem uma compensação para o sofrimento de que ninguém nos protege.
Não sou a única com uma vida miserável. Os casos aqui, no meu bairro, são mais que muitos. E tudo já mudou bastante. As assistentes sociais têm feito um bom trabalho, mas são poucas e não conseguem abranger todos os problemas.
Para pílulas não há dinheiro, roubam-se preservativos e esperamos estar sempre prevenidos. Só que o Verão é uma coisa terrível. E à noite é fácil soçobrar. Os corpos parecem que emanam um perfume inebriante que acicata a vontade. Tudo direito, preservativo colocado e o filho da mãe rebentou. Não vai acontecer nada, pensei eu. Se me tivessem falado da pílula do dia seguinte, eu podia ter feito alguma coisa. Quando não me veio o período, e como muitas amigas estavam ou estiveram grávidas, decidi fazer um teste.
Positivo.
Tudo se desmoronou. Não tenho a mínima hipótese de criar um filho. E para a adopção, nem pensar.
Por tudo isto, quando ouvi falar dos desmanchos, resolvi descobrir onde os faziam e arranjei o dinheiro com o menino que me pôs neste estado. Chego ao prédio que me indicaram e, sem ficar muito espantada, parece que vai cair a qualquer momento. Penso em ir embora, mas não o faço. Nem sei muito bem porquê. Entro e levam-me para um quarto. Sento-me numa cadeira cheia de ferrugem e ponho as pernas na posição. Sem anestesia, sinto tudo e a dor é alucinante.
Sei que passou pouco tempo, não tirei os olhos do relógio, mas aqueles momentos decorreram com uma lentidão própria que se gera quando alguém deseja ardentemente uma coisa que é como se cada segundo se transformasse numa amostra de eternidade.
Já está, diz-me com uma frieza desumana, assim como as suas recomendações. Saio e caminho em direcção a casa e sinto uma tontura. Deve ser normal, penso. A seguir, outra e outra, começo a ver o mundo como que através de uma bruma e percebo que algo está errado. Começo a sentir o sangue a escorrer-me pelas pernas abaixo em golfadas que não são normais. Não me consigo manter de pé e caio. Sinto no chão gelado algo a envolver-me num abraço tépido.
Alguém se aproxima e diz que me estou a esvair em sangue e pergunta-me qualquer coisa que não consigo compreender. Esforço-me por falar mas não consigo articular nenhum som. Será isto morrer? Tenho tanto medo. Chamam o 112 e continuam a tentar falar comigo. Não sei quanto tempo passou, mas oiço a sirene da ambulância…
Filipe Pinto.
publicado por armando ésse às 10:09
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Janeiro 17 2007

Chamo-me M. e tenho 16 anos. Estou grávida e não quero estar. O desespero apossou-se de mim e não sei o que fazer. Já pensei em matar-me mas eu quero viver. Falar com os meus pais é impensável. O meu pai é um alcoólico incorrigível, nunca trabalhou ou teve uma ocupação digna desse nome. É inútil qualquer esforço de memória que faça para recordar um momento de sobriedade em que ele se tenha revelado algo mais que o animal que me sovava a mim e aos meus irmãos até as lágrimas dissolverem a dor. Em inúmeras ocasiões era mesmo a fraqueza por não termos que comer que tornava tudo mais fácil de suportar. Ficávamos prostrados, num estado de letargia provocado pela fome. Nestas alturas que a pancada era menos dolorosa, porque facilmente perdíamos os sentidos ou tombávamos. Ninguém conseguia gritar, o que lhe retirava o ânimo.
A minha mãe tem uma atitude perante a vida que me lembra os meus amigos quando estão pedrados. Os olhos sempre fixos num ponto imaginário, completamente alheada da realidade, ou quando muito presa ao seu mundo. Existe não existindo, como se a vida dela se desenrolasse num plano diferente do nosso e nós somos apenas objectos translúcidos, sem substância, como que parte de um estranho sonho.
Fiz-me adulta muito nova, nas ruas. Sobre sexo aprendi com os outros. O que ninguém me ensinou ou me descreveu foi o significado do tesão, do desejo que não consigo controlar. Tudo seria mais fácil se fossemos como os bichos que têm as épocas de cio para procriar. Não o faço com qualquer um, mas com quem gosto perco deliberadamente o controlo. As carícias, os beijos, a queca, e é como se aqueles momentos fossem uma compensação para o sofrimento de que ninguém nos protege.
Não sou a única com uma vida miserável. Os casos aqui, no meu bairro, são mais que muitos. E tudo já mudou bastante. As assistentes sociais têm feito um bom trabalho, mas são poucas e não conseguem abranger todos os problemas.
Para pílulas não há dinheiro, roubam-se preservativos e esperamos estar sempre prevenidos. Só que o Verão é uma coisa terrível. E à noite é fácil soçobrar. Os corpos parecem que emanam um perfume inebriante que acicata a vontade. Tudo direito, preservativo colocado e o filho da mãe rebentou. Não vai acontecer nada, pensei eu. Se me tivessem falado da pílula do dia seguinte, eu podia ter feito alguma coisa. Quando não me veio o período, e como muitas amigas estavam ou estiveram grávidas, decidi fazer um teste.
Positivo.
Tudo se desmoronou. Não tenho a mínima hipótese de criar um filho. E para a adopção, nem pensar.
Por tudo isto, quando ouvi falar dos desmanchos, resolvi descobrir onde os faziam e arranjei o dinheiro com o menino que me pôs neste estado. Chego ao prédio que me indicaram e, sem ficar muito espantada, parece que vai cair a qualquer momento. Penso em ir embora, mas não o faço. Nem sei muito bem porquê. Entro e levam-me para um quarto. Sento-me numa cadeira cheia de ferrugem e ponho as pernas na posição. Sem anestesia, sinto tudo e a dor é alucinante.
Sei que passou pouco tempo, não tirei os olhos do relógio, mas aqueles momentos decorreram com uma lentidão própria que se gera quando alguém deseja ardentemente uma coisa que é como se cada segundo se transformasse numa amostra de eternidade.
Já está, diz-me com uma frieza desumana, assim como as suas recomendações. Saio e caminho em direcção a casa e sinto uma tontura. Deve ser normal, penso. A seguir, outra e outra, começo a ver o mundo como que através de uma bruma e percebo que algo está errado. Começo a sentir o sangue a escorrer-me pelas pernas abaixo em golfadas que não são normais. Não me consigo manter de pé e caio. Sinto no chão gelado algo a envolver-me num abraço tépido.
Alguém se aproxima e diz que me estou a esvair em sangue e pergunta-me qualquer coisa que não consigo compreender. Esforço-me por falar mas não consigo articular nenhum som. Será isto morrer? Tenho tanto medo. Chamam o 112 e continuam a tentar falar comigo. Não sei quanto tempo passou, mas oiço a sirene da ambulância…
Filipe Pinto.
publicado por armando ésse às 10:09
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Janeiro 11 2007

Se há palavras que têm sobre mim um efeito nauseante uma é “Aborto”. A carga negativa desta palavra é incompreensivelmente enorme. Será certamente o resultado de anos de condicionamento induzido pela propaganda estigmatizante que recaía sobre este assunto.
Um pouco cansado dos insuportáveis estribilhos utilizados por cada uma das partes envolvidas neste debate, uma espécie de fundamentalismo militante de uma qualquer causa que não o é, há um conjunto de reflexões que surgem de uma análise não simplista, muito menos maniqueísta, e que transcendem o acto.
Sem ser condescendente e muito menos parecer correligionário de qualquer um dos pontos de vista, até porque podemos ser contra o aborto e votar sim, é uma abordagem minimalista do problema tentar argumentar em prol de uma ou da outra posição com base nos argumentos extremos, por um lado, de que a mulher é a dona do seu corpo e, portanto, a decisão cabe-lhe exclusivamente, como se o aborto fosse colocar um piercing, e, por outro lado, alimentar o autismo vigente face ao problema real existente, transmitindo a ideia de que há opções para além do aborto sem concretizar.
É preciso perceber que caso vença o não, as interrupções voluntárias da gravidez (que notável amaciamento) não vão acabar e que, se ganhar o sim, para além do estigma não desaparecer, a designação de “voluntária” não pode passar a confundir-se com banalidade e com inconsequência e muito menos com uma espécie de impulsionador de uma nova revolução sexual semelhante à produzida pela pílula.
Mais importante que isso, qualquer que seja o resultado, não deve imbuir as pessoas de um sentimento de vitória política. Seja de que maneira for, é uma derrota.
Claramente.
O porquê das pessoas abortarem já foi amplamente discutido. O porquê do porquê é que não, ou seja, os grandes problemas sociais que atiram as pessoas para um ponto sem retorno. Individualizam-se os casos e esquece-se a responsabilidade colectiva. Será que alguém acredita que qualquer mulher que vai abortar o faz porque acordou com essa vontade? Para além dos seus motivos pessoais, não seremos nós, enquanto integrantes de uma sociedade que esmaga as pessoas, também responsáveis?
Recentemente fomos inundados por notícias de casos de abusos sexuais, crianças vítimas de maus-tratos e mortas. Num mundo tão profundamente injusto que facilmente se conclui que a protecção exigível está longe de ser perfeita e, também, está longe de oferecer opções credíveis.
Num país onde a sexualidade em muitos sectores está ainda imbuída de uma aura pecaminosa, responsável por complexos de culpa que provocam um grande sofrimento, não podemos esperar uma abordagem à reprodução com a seriedade que esta exige. Esta atitude cria enormes dificuldades no diálogo entre pais e filhos, que é incipiente, na maioria das vezes no sentido da castração, da negação do desejo, um dos mais fortes impulsos do Homem, em resultado de uma visa redutora do ser humano, apelidando-o de ser espiritual reduzindo-o ao mesmo tempo a um procriador social.
A sensação que dá é que a resistência à introdução a educação sexual nas escolas é feita pelos mesmos que não preparam os filhos, que não deixam os outros faze-lo, e muito provavelmente vão votar não.
Posto isto, mantém-se o problema do aborto “em vão de escada”. E vai manter-se caso vença o não. A mim, incomoda-me esta carnificina. E, mesmo quem não concorda, permitir que morram pessoas desta maneira incorre em alguma incoerência. Assegurar, no mínimo, a higiene necessária e a capacidade técnica de quem os faz, é também um sinal de humanitarismo e solidariedade. É que, independentemente da nossa opinião, as pessoas vão abortar.
Filipe Pinto.
publicado por armando ésse às 07:48
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Janeiro 11 2007

Se há palavras que têm sobre mim um efeito nauseante uma é “Aborto”. A carga negativa desta palavra é incompreensivelmente enorme. Será certamente o resultado de anos de condicionamento induzido pela propaganda estigmatizante que recaía sobre este assunto.
Um pouco cansado dos insuportáveis estribilhos utilizados por cada uma das partes envolvidas neste debate, uma espécie de fundamentalismo militante de uma qualquer causa que não o é, há um conjunto de reflexões que surgem de uma análise não simplista, muito menos maniqueísta, e que transcendem o acto.
Sem ser condescendente e muito menos parecer correligionário de qualquer um dos pontos de vista, até porque podemos ser contra o aborto e votar sim, é uma abordagem minimalista do problema tentar argumentar em prol de uma ou da outra posição com base nos argumentos extremos, por um lado, de que a mulher é a dona do seu corpo e, portanto, a decisão cabe-lhe exclusivamente, como se o aborto fosse colocar um piercing, e, por outro lado, alimentar o autismo vigente face ao problema real existente, transmitindo a ideia de que há opções para além do aborto sem concretizar.
É preciso perceber que caso vença o não, as interrupções voluntárias da gravidez (que notável amaciamento) não vão acabar e que, se ganhar o sim, para além do estigma não desaparecer, a designação de “voluntária” não pode passar a confundir-se com banalidade e com inconsequência e muito menos com uma espécie de impulsionador de uma nova revolução sexual semelhante à produzida pela pílula.
Mais importante que isso, qualquer que seja o resultado, não deve imbuir as pessoas de um sentimento de vitória política. Seja de que maneira for, é uma derrota.
Claramente.
O porquê das pessoas abortarem já foi amplamente discutido. O porquê do porquê é que não, ou seja, os grandes problemas sociais que atiram as pessoas para um ponto sem retorno. Individualizam-se os casos e esquece-se a responsabilidade colectiva. Será que alguém acredita que qualquer mulher que vai abortar o faz porque acordou com essa vontade? Para além dos seus motivos pessoais, não seremos nós, enquanto integrantes de uma sociedade que esmaga as pessoas, também responsáveis?
Recentemente fomos inundados por notícias de casos de abusos sexuais, crianças vítimas de maus-tratos e mortas. Num mundo tão profundamente injusto que facilmente se conclui que a protecção exigível está longe de ser perfeita e, também, está longe de oferecer opções credíveis.
Num país onde a sexualidade em muitos sectores está ainda imbuída de uma aura pecaminosa, responsável por complexos de culpa que provocam um grande sofrimento, não podemos esperar uma abordagem à reprodução com a seriedade que esta exige. Esta atitude cria enormes dificuldades no diálogo entre pais e filhos, que é incipiente, na maioria das vezes no sentido da castração, da negação do desejo, um dos mais fortes impulsos do Homem, em resultado de uma visa redutora do ser humano, apelidando-o de ser espiritual reduzindo-o ao mesmo tempo a um procriador social.
A sensação que dá é que a resistência à introdução a educação sexual nas escolas é feita pelos mesmos que não preparam os filhos, que não deixam os outros faze-lo, e muito provavelmente vão votar não.
Posto isto, mantém-se o problema do aborto “em vão de escada”. E vai manter-se caso vença o não. A mim, incomoda-me esta carnificina. E, mesmo quem não concorda, permitir que morram pessoas desta maneira incorre em alguma incoerência. Assegurar, no mínimo, a higiene necessária e a capacidade técnica de quem os faz, é também um sinal de humanitarismo e solidariedade. É que, independentemente da nossa opinião, as pessoas vão abortar.
Filipe Pinto.
publicado por armando ésse às 07:48
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