A FÁBRICA

Maio 07 2009

Caro amigo, nas horas poeirentas e intemporais da cidade, agora que as ruas jazem negras e exalam nuvens de vapor na esteira dos camiões-cisterna e agora que os bêbedos e os sem-abrigo desaguaram nas vielas e nos terrenos baldios, abrigados junto aos muros, e os gatos vagueiam nas soturnas cercanias, esguios e de espáduas altaneiras, agora nestas galerias empedradas ou de tijolos enegrecidos de fuligem onde as sombras dos fios eléctricos formam uma harpa espectral nas portas das caves, ninguém caminhará senão tu.
Velhos muros de pedra que resistiram, indemnes, às intempéries, com ossos fossilizados ocultos nas suas estrias, escaravelhos calcários alojados nas pregas desta planura, outrora leito de um mar interior. Árvores magras e escuras que se avistam através da estacaria metálica, mais, além, onde os mortos habitam uma pequena metrópole só sua. Uma curiosa arquitectura de mármore, estelas e obeliscos e cruzes e pequenas lápides gastas pela chuva em cuja face os nomes se esbatem com o passar dos anos. A terra repleta de amostras da arte do fabricante de ataúdes, ossos reduzidos a pó e seda apodrecida, as vestes dos mortos manchados de carne putrefacta. Lá adiante, à luz azul dos candeeiros, os carris do eléctrico perdem-se nas trevas, curvos como esporões de galo ao lusco-fusco de ouropel. O aço exala o calor do dia, podes senti-lo através das solas dos sapatos. Deixa para trás as paredes de chapa ondulada destes armazéns e percorre as ruelas arenosas onde carros esventrados repousam, sorumbáticos, sobre pedestais de tijolos de cimento. Atravessa maciços labirínticos de sumagre e erva-tintureira e madressilva ressequida que dão para os taludes barrentos do caminho-de-ferro, cobertos de sulcos e entalhes. Trepadeiras cinzentas enroscadas para a esquerda neste hemisfério setentrional, torcidas pela mesma força que molda a concha do burrié. Ervas daninhas que brotaram da cinza, entre tijolos. Uma escavadora a vapor de pá erguida, recortada sobre o céu nocturno num abandono solitário. Atravessa aqui. Sobre carris bifurcados e eclises onde as automotoras roncam como leões na escuridão do parque ferroviário. Penetra numa cidade mais sombria, deixa para trás candeeiros de lâmpadas partidas à pedrada, choupanas fumegantes de paredes oblíquas e cães de porcelana e pneus pintados onde crescem flores sujas. Percorre pavimentos lacerados pela devastação, o lento cataclismo do abandono, os fios eléctricos que pendem, barrigudos e envoltos em cordéis de papagaios-de-papel, de poste em poste, por entre as constelações, adornados com toscas gravatas feitas de garrafas atadas aos pares pelos gargalos ou brinquedos de petizes. O acampamento dos danados. Terrenos, quiçá, onde leprosos de lábios gotejantes deambulam sem sineta.
Primeira página do livro “Suttree” de Cormac McCarthy, traduzido por Paulo Faria e editado pela Relógio D’Água Editores, Fevereiro de 2009.
Quarto romance publicado por McCarthy (originalmente em 1979), é o seu livro mais extenso e aquele que mais tempo de escrita lhe consumiu: pelo menos vinte anos (período durante o qual escreveu também e publicou outros três romances). Será igualmente o mais "autobiográfico", tomando por cenário a provinciana "metrópole" de Knoxville (onde McCarthy cresceu e passou parte da sua vida de adulto) e arredores. Não há em "Suttree" uma progressão dramática que lisonjeie a atenção do leitor, mas antes uma sucessão (não linear cronologicamente, nem evidente do ponto de vista da enunciação) de episódios, de quadros, da vida do protagonista entre 1950 e 1955. Cornelius Suttree é alguém que abandonou tudo - o privilegiado estauto social familiar, a mulher e o filho pequeno (que depois morre) -para viver solitariamente ao sabor da corrente (literal e metaforicamente). Não sabemos por que o fez, que idade terá, o que procura (se é que procura algo); sabemos que se abriga numa miserável casa flutuante no rio, que se dedica preguiçosa e altivamente à pesca à linha para arranjar os poucos tostões de que necessita para sobreviver, sabemos que esteve preso (e é quando encontra outra entranhável personagem deste livro, Harrogate, um adolescente fornicador de melancias), sabemos que vagueia melancolicamente sem destino nem premeditação, que confraterniza com pobres e marginais, humilhados e ofendidos, rameiras e travestis (mas não com banqueiros e corretores), com os quais é alheiamente generoso e bom. São anos "na companhia de larápios, desvalidos, celerados, párias, poltrões, tratantes, rústicos, sandeus, homicidas, tavolageiros, alcouceiras, marafonas, rascoeiras, salteadores, beberrões, bebedanas, borrachos e arquiborrachos, labrostes, lúbricos, vagabundos, bargantes e tantos outros debochados, vá lá saber-se qual deles mais perverso" (continuo sem saber se a por vezes estonteante riqueza lexical de McCarthy tem origem no seu gosto afiado pela descrição minuciosa e exacta, seja da fauna ou da flora, seja de ofícios ou artefactos, ou se é o inverso).( Ípsilon).
publicado por armando ésse às 15:16

Abril 30 2009

Para o gabinete do Primeiro-Ministro:
Sua Excelência Wen Jiabao
Pequim
Capital da Nação Amante da Liberdade da China
Do gabinete de:
"O Tigre Branco"
Um homem dado à reflexão
E um empresário
Que reside no centro mundial de Tecnologia e Subcontratação Electronics City Phase 1 (mesmo à saída de Hosur Main Road) Bangalore, Índia
Sr. Primeiro-Ministro
Nem eu nem o senhor falamos inglês, mas há coisas que só podem ser ditas em inglês.
A minha antiga patroa, a falecida ex-mulher do Sr. Ashok, Madame Pinky, ensinou-me umas quantas coisas; e, às 11h32 da noite de hoje, o que foi à cerca de dez minutos, quando a senhora da All India Radio anunciou: "O Primeiro-Ministro Jiabao chega a Bangalore na próxima semana", saiu-me logo uma delas.
Na verdade, sempre que homens ilustres como o senhor visitam o nosso país, sai-me sempre o mesmo. Não que eu tenha alguma coisa contra homens ilustres. À minha maneira, senhor, considero-me um seu igual. Mas sempre que vejo o nosso primeiro-ministro e os seus distintos colaboradores chegados serem conduzidos ao aeroporto em automóveis pretos, saírem e porem-se a fazer-lhe namastés diante duma câmara de televisão e a assegurarem-lhe de que a Índia é santa e virtuosa, não me consigo conter de dizer aquilo em inglês.
Bom, então, Vossa Excelência sempre nos vem visitar na próxima semana, não é verdade? Em geral, a All India Radio é de fiar em assuntos deste âmbito.
Era uma piada, senhor.
Ah!
É por isso que me decidi a perguntar-lhe directamente se é mesmo verdade que vem a Bangalore. Porque, a ser assim, tenho algo importante a comunicar-lhe. Sabe, a senhora da rádio disse: " O Senhor Jiabao vem em missão: quer conhecer a verdade a respeito de Bangalore".
Senti o sangue gelar-me nas veias. Se há alguém que saiba a verdade a respeito de Bangalore, essa pessoa seu eu.
A seguir, a senhora locutora acrescentou: " O Senhor Jiabao pretende conhecer alguns empresários indianos e ouvir a história do seu êxito pela sua própria boca".
Aqui, ela explicou um pouco melhor. Ao que consta, senhor, vocês, os chineses, encontram-se muito adiantados em relação a nós em todos os aspectos, à ecepção do facto de não terem empresários. E a nossa nação, apesar de não ter àgua potável, nem electricidade, nem sistemas de esgotos, nem transportes públicos, nem regras de higiene, nem disciplina, nem boas maneiras, nem pontualidade, verdade seja dita que empresários não lhe faltam. São aos milhares. Sobretudo na área da tecnologia. E foram estes mesmos empresários - nós, empresários- que implantaram todas as empresas de subcontratação que agora praticamente governam a América.
Primeira página do livro O Tigre Branco, de Aravind Adiga, EDITORIAL PRESENÇA, 1ª edição, Março 2009
Da contra capa:
Premiado com o Booker Prize de 2008, O Tigre Branco é um romance de estreia auspicioso que, sem cair no cliché do romantismo exótico e superficial, nos revela uma Índia ainda muito pouco explorada pela ficção, a Índia negra, violenta e exuberante das desigualdades socioculturais endémicas. Aravind Adiga oferece-nos um retrato cru e muito pouco glamoroso da desumana realidade de vida das classes mais pobres pela voz espirituosa e mordaz do narrador, Balram Halwai, um jovem que cresce no interior miserável da Índia e se torna um empresário de sucesso em Bangalore. E é através do seu percurso moralmente ambíguo que conhecemos as discrepâncias chocantes entre o luxo extravagante da elite rica dos boulevards e a luta desesperada pela sobrevivência dos que nada têm. Uma comédia negra irreverente que desmistifica a Índia lírica e nostálgica que tantas vezes idealizamos.
publicado por armando ésse às 13:16

Fevereiro 12 2009

Quando observamos os indivíduos pertencentes à mesma variedade ou subvariedade das plantas cultivadas há mais tempo e dos animais domésticos mais antigos, um dos primeiros aspectos que sobressaem é que estes, geralmente, diferem muito mais uns dos outros do que o que acontece entre indivíduos pertencentes a qualquer espécie ou variedade selvagem. Se reflectirmos sobre a vasta diversidade das plantas que têm sido cultivadas e dos animais que têm sido domesticados, sofrendo variações ao longo dos tempos sob os mais diversos climas e circunstâncias, somos levados a concluir que esta grande variabilidade se deve simplesmente ao facto de as nossas produções domésticas terem sido criadas sob condições de vida menos uniformes, e de alguma forma diferentes, daquelas a que a espécie-mãe esteve exposta na natureza. Existe também, na minha opinião, alguma probabilidade real na ideia proposta por Andrew Knight de que esta variabilidade pode em parte estar associada ao excesso de alimento. Parece bastante evidente que os seres orgânicos tenham de ser expostos às novas condições de vida durante várias gerações, até que se produza qualquer variação apreciável; como também parece evidente que, uma vez que a organização interna comece a variar, esta continue em regra a fazê-lo por inúmeras gerações. Não existe nenhum registo de um caso em que um organismo variável tenha cessado de variar no estado doméstico. As nossas plantas com histórias de cultivo mais antigas, tal como o trigo, ainda produzem com frequência novas variedades. Os nossos animais domésticos mais antigos são ainda susceptíveis de modificações ou aperfeiçoamentos rápidos.
1ª Página do livro, A Origem das Espécies, de Charles Darwin, Publicações Europa-América, Edição Agosto de 2005.


“O livro que abalou o mundo” como é muitas vezes referido, foi lançado no dia 24 de Novembro de 1859 com o título original de On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life (Sobre a Origem das Espécies Através da Selecção Natural ou a Preservação de Raças Favorecidas na Luta pela Vida). A primeira edição de 1250 exemplares esgotou no próprio dia, sucedendo-lhe mais cinco edições, que compreendiam dados adicionais e revisões contextuais para rebater os argumentos que se foram levantando. Curiosamente, a palavra evolução é pela primeira vez introduzida na sexta edição, assim como, a expressão “sobrevivência do mais apto”, que não é da autoria de Darwin, mas sim do filósofo Herbert Spencer. Portanto é inapropriado relacionar o conceito “darwinismo social” a Charles Darwin. “Luta pela sobrevivência”, “direito do mais forte” nunca foram palavras de Charles Darwin, mas sim conceitos manipulados por outros. O darwinismo social é um conceito que se deveria chamar de “spencerismo”, pois não tem absolutamente nada a ver com a teoria de evolução de Charles Darwin.
À data de publicação, “A Origem das Espécies” gera um escândalo sem precedentes. Mesmo que, no início, se iniba de evocar o homem e o macaco, toda a gente compreende o alcance da Teoria. Ao afirmar que todas as espécies vivas descendem de um antepassado comum em resultado de um processo de evolução que, por selecção natural, eliminou os menos adaptados, Darwin entra em conflito não só com a fé, mas também com o antropomorfismo. Escarnecido pela imprensa, acrescido de uma cauda e dotado de um corpo simiesco pelos caricaturistas, desprezado pela Igreja, Darwin tornou-se famoso da noite para o dia.
Desde a Antiguidade que a perfeição dos mecanismos naturais era assumida como prova da existência divina. Com a Teoria da Evolução Darwin, diz-se adeus à Providência. Trata-se, nem mais nem menos, de substituir a religião pela ciência. O francês Jean-Henri Fabre dedicará a sua vida a tentar desmontar a teoria darwiniana, na qual não vê senão “um jogo do espírito”. Outros entregam-se de corpo e alma à sua defesa, como Thomas Huxley ou o botânico Joseph Hooker.
O debate mais espectacular teve lugar na Universidade de Oxford, em 30 de Junho de 1860, perante uma plateia repleta. O duelo opõe os partidários do investigador, em particular o zoologista Thomas Huxley, apelidado de “buldogue de Darwin”, ao bispo de Oxford, Sam Wilberforce. Numa célebre interpelação, este último pergunta a Huxley se é “da parte do seu avô ou da sua avó que descende do macaco”, provocando uma réplica não menos memorável, embora persistam dúvidas sobre as suas exactas palavras: “Se a questão é se eu preferiria ter um macaco como avô ou um homem altamente favorecido pela natureza, que possui grande capacidade de influência, mas mesmo assim emprega essa capacidade e influência para o mero propósito de introduzir o ridículo numa discussão científica séria, eu não hesitaria afirmar a preferência pelo macaco!”
A “guerra do macaco” continua hoje em dia, mesmo que o Vaticano tenha admitido, em 1996, que a teoria da evolução era “mais do que uma hipótese”, os poderosos lóbis protestantes, nunca abdicarão de tentar impôr o"desígnio inteligente" da criação do Mundo.
publicado por armando ésse às 10:50

Junho 06 2008

O velho von Rundstedt, na sua sagacidade, nunca confiara nas defesas fixas. Tinha dirigido o cerco magistral da linha Maginot, que levara à derrota da França em 1940. Para ele, a Muralha do Atlântico não passava dum monumental bluff destinado mais ao povo alemão do que ao inimigo… e o inimigo, graças aos seus agentes de informação, sabe mais do que nós sobre a Muralha”. As fortificações “aborreciam temporariamente” os Aliados, mas não dominariam a ofensiva. Nada, na opinião de von Rundstedt, poderia impedir o sucesso dos primeiros desembarques. O seu plano, a sua contra-ofensiva, consistia em juntar o maior número possível de tropas em pontos relativamente afastados da costa e em atacar depois do desembarque. Era nesse momento que seria preciso assestar o golpe – na altura em que o inimigo estava ainda fraco, em que o seu abastecimento não estava organizado e em que não tinha tido tempo para consolidar a sua testa-de-ponte.
Rommel combatia energicamente esta teoria. Para ele, só existia um processo de repelir o assalto: de frente, cabeça baixa. Não teriam tempo para mandar vir reforços maciços da retaguarda. Os comboios, estava certo, seriam destruídos pelos incessantes ataques aéreos e pelos bombardeamentos navais. Na sua opinião tudo deveria estar a postos, no local, desde as tropas de infantaria até às divisões blindadas. O ajudante de campo de Rommel lembrava-se bem do dia em que o marechal lhe expusera a sua estratégia. Estavam numa praia deserta e Rommel, silhueta maciça e atarracada, dentro do pesado capote, com um lenço ao pescoço, andava para trás e para diante agitando o bastão de marechal “oficioso”, um chicote negro de botão de prata donde pendia uma borla de seda preta, branca e vermelha. Mostrava o areal com a ponta do chicote.
- A guerra será ganha ou perdida nestas praias – disse. – Só temos uma possibilidade de repelir o inimigo, e é quando estiver na água, chafurdando e lutando para chegar a terra. Os nossos reforços nunca chegarão aos locais de ataque e seria loucura esperar por eles. A Hauptkampflinie (a principal linha da resistência) estará aqui. Todas as nossas forças devem encontrar-se ao longo destas praias, Acredite-me, Lang, as primeiras vinte e quatro horas da invasão serão decisivas…Tanto para os Aliados como para a Alemanha, esse será o dia mais longo.
Excerto do livro, O Dia Mais Longo, de Cornelius Ryan, Livraria Bertrand, 3º edição, sem data da edição.
publicado por armando ésse às 11:56

Junho 06 2008

O velho von Rundstedt, na sua sagacidade, nunca confiara nas defesas fixas. Tinha dirigido o cerco magistral da linha Maginot, que levara à derrota da França em 1940. Para ele, a Muralha do Atlântico não passava dum monumental bluff destinado mais ao povo alemão do que ao inimigo… e o inimigo, graças aos seus agentes de informação, sabe mais do que nós sobre a Muralha”. As fortificações “aborreciam temporariamente” os Aliados, mas não dominariam a ofensiva. Nada, na opinião de von Rundstedt, poderia impedir o sucesso dos primeiros desembarques. O seu plano, a sua contra-ofensiva, consistia em juntar o maior número possível de tropas em pontos relativamente afastados da costa e em atacar depois do desembarque. Era nesse momento que seria preciso assestar o golpe – na altura em que o inimigo estava ainda fraco, em que o seu abastecimento não estava organizado e em que não tinha tido tempo para consolidar a sua testa-de-ponte.
Rommel combatia energicamente esta teoria. Para ele, só existia um processo de repelir o assalto: de frente, cabeça baixa. Não teriam tempo para mandar vir reforços maciços da retaguarda. Os comboios, estava certo, seriam destruídos pelos incessantes ataques aéreos e pelos bombardeamentos navais. Na sua opinião tudo deveria estar a postos, no local, desde as tropas de infantaria até às divisões blindadas. O ajudante de campo de Rommel lembrava-se bem do dia em que o marechal lhe expusera a sua estratégia. Estavam numa praia deserta e Rommel, silhueta maciça e atarracada, dentro do pesado capote, com um lenço ao pescoço, andava para trás e para diante agitando o bastão de marechal “oficioso”, um chicote negro de botão de prata donde pendia uma borla de seda preta, branca e vermelha. Mostrava o areal com a ponta do chicote.
- A guerra será ganha ou perdida nestas praias – disse. – Só temos uma possibilidade de repelir o inimigo, e é quando estiver na água, chafurdando e lutando para chegar a terra. Os nossos reforços nunca chegarão aos locais de ataque e seria loucura esperar por eles. A Hauptkampflinie (a principal linha da resistência) estará aqui. Todas as nossas forças devem encontrar-se ao longo destas praias, Acredite-me, Lang, as primeiras vinte e quatro horas da invasão serão decisivas…Tanto para os Aliados como para a Alemanha, esse será o dia mais longo.
Excerto do livro, O Dia Mais Longo, de Cornelius Ryan, Livraria Bertrand, 3º edição, sem data da edição.
publicado por armando ésse às 11:56

Maio 31 2008

Dentro em breve estarei apesar de tudo bem morto finalmente. Talvez para o mês que vem. Será então o mês de Abril ou de Maio. Porque o ano vai pouco adiantado, mil pequenos indícios mo dizem. Pode ser que me engane e que passe ainda o São João ou até o 14 de Julho, festa da liberdade. Que estou eu a dizer, sou capaz de chegar à Transfiguração, sendo como sei que sou, ou à Assunção. Mas não creio, não creio enganar-me quando digo que esses festejos, este ano, se farão sem mim. É o que sinto, sinto-o há já alguns dias, e acredito na minha impressão. Mas em que é que essa impressão é diferente das que me têm enganado desde que nasci? Não, trata-se de um género de pergunta que já não pega, comigo já não pega, já não preciso de pintar. Morria hoje mesmo, se quisesse, bastava fazer um bocadinho de força, se fosse capaz de querer, se fosse capaz de fazer força. Mas mais vale deixar-me morrer, sem apressar as coisas. Já não quero pesar na balança, nem para um lado nem para o outro. Vou ficar inerte e neutro. Será Fácil. O que interessa é só prestar atenção aos sobressaltos. De resto tenho menos sobressaltos desde que aqui estou. Tenho ainda evidentemente acessos de impaciência de vez em quando. Disso é que tenho de me defender agora, durante quinze dias ou três semanas. Sem exagerar é claro, rindo e chorando sossegado, sem me exaltar. Sim, finalmente vou ser natural, sofrerei mais, e depois menos, sem tirar conclusões, ouvir-me-ei menos, não serei frio nem quente, serei morno, morrerei morno, sem entusiasmos. Não me verei morrer, isso falsearia tudo.
1ª Página do livro, Malone Está a Morrer, de Samuel Beckett, Edições Dom Quixote, 2ª edição, Maio de 2003.
Nota: Considerado um dos maiores escritores e dramaturgos do século XX, Samuel Beckett nasceu a 13 de Abril de 1906, na localidade de Foxrock, perto de Dublin, na Irlanda.
Nascido no seio de uma abastada família protestante, não teve uma infância muito feliz e depressa se tornou num jovem infeliz. Inadaptado às regras de uma sociedade que considerava repulsiva, refugia-se na solidão, que faz transparecer em toda a sua obra.
Em 1923 ingressa no Trinity College, de Dublin para fazer a sua formação académica, onde em 1927, se licenciou em línguas modernas, francês e italiano, com uma excelente classificação.
Em 1928, Beckett mudou-se para Paris, onde conheceu James Joyce, e depressa se tornou um seguidor do escritor. Esta amizade será decisiva para a sua carreira literária. Aos 23 anos, escreveu um ensaio em defesa de "Ulisses", a obra-prima de James Joyce, que tinha sido proibida na sua Irlanda natal.
Depois de um estudo sobre Proust, Samuel Beckett, chegou à conclusão que o hábito e a rotina eram o “cancro do tempo”: o tempo, inexorável, ao qual estamos presos. Samuel Beckett, faz questão de nos lembrar, que a cada momento, o fim se aproxima, que a morte espreita, que o jogo irá acabar e nós irremediavelmente, perderemos.
Se temos conhecimento disso, então por que continua-mos à espera? Porquê? Porque devemos saber que enquanto se espera a vida continua e devemos vive-la da melhor forma possível, a cada segundo, compreendendo-a pequena e grandiosa ao mesmo tempo.
Por causa destas conclusões, abandonou o seu cargo no Trinity College e iniciou uma viagem pela Europa, visitando a França, Inglaterra e a Alemanha, onde viveu as mais diversas experiências que depois se traduziram em personagens.
Em 1938 fixou residência em Paris, onde dois acontecimentos o vão marcar para o resto da vida: é gravemente ferido ao ser agredido por um estranho, que lhe desferiu uma facada no peito, e conhece Suzanne Deschevaux-Dusmenoil, o amor da sua vida e com quem se casaria em 1961.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Beckett permaneceu em Paris, onde lutou pela Resistência, até que alguns membros o seu grupo foram presos e Beckett foi forçado a refugiar-se, com a sua mulher na zona conhecida como "França Livre", a parte da França que não tinha sido ocupada, pelas tropas nazistas.
Em 1945, regressou a Paris e iniciou o seu período mais prolífico enquanto escritor. No período cinco anos, entre 1948 e 1953, produziu a sua obra mais significativa. Escreveu "Eleutheria" (1948), "À espera de Godot" (1952), e a trilogia, universalmente aclamada como essencial à compreensão da experiência humana, “Molloy” (1951), “Malone está a Morrer” (1951) e “O Inominável” (1953).
O seu primeiro sucesso, chegou, em 1952 com "À Espera de Godot". Apesar das especulações, a pequena peça onde nada acontece, tornou-se num sucesso repentino e um marco no teatro do absurdo. As personagens desta peça, exemplificam a situação do homem encurralado num mundo de rotina: dois vagabundos, Vladimir e Estrabon, indecisos e inertes, esperam em vão a chegada de um personagem enigmático e misterioso, Godot, símbolo do inalcançável, que de um modo inexplicável, melhorará as suas vidas.
Depois do sucesso de "À Espera de Godot", Samuel Beckett dedica-se a traduzir os seus textos para inglês e volta a escrever nesta língua, construindo, um caso raro na Literatura moderna, uma obra bilingue.
As obras de Beckett traduzem com um grande poder de síntese, toda a condição humana. As questões que são necessárias esclarecer dessa condição são amplamente trabalhadas e poeticamente materializadas. Os personagens das suas obras, reflectem a posição do autor em relação à vida, à morte, aos desejos, aos fracassos e à impossibilidade da felicidade.
O reconhecimento crescente do seu trabalho culminaria com o Prémio Nobel da Literatura, em 1969. Depois disso e apesar de ser aclamado a nível mundial, continuou a escrever até à sua morte, que ocorreu em Paris, a 22 de Dezembro de 1989, vítima de enfisema, contra o qual lutou nos últimos três anos, da sua vida.
publicado por armando ésse às 09:43

Maio 31 2008

Dentro em breve estarei apesar de tudo bem morto finalmente. Talvez para o mês que vem. Será então o mês de Abril ou de Maio. Porque o ano vai pouco adiantado, mil pequenos indícios mo dizem. Pode ser que me engane e que passe ainda o São João ou até o 14 de Julho, festa da liberdade. Que estou eu a dizer, sou capaz de chegar à Transfiguração, sendo como sei que sou, ou à Assunção. Mas não creio, não creio enganar-me quando digo que esses festejos, este ano, se farão sem mim. É o que sinto, sinto-o há já alguns dias, e acredito na minha impressão. Mas em que é que essa impressão é diferente das que me têm enganado desde que nasci? Não, trata-se de um género de pergunta que já não pega, comigo já não pega, já não preciso de pintar. Morria hoje mesmo, se quisesse, bastava fazer um bocadinho de força, se fosse capaz de querer, se fosse capaz de fazer força. Mas mais vale deixar-me morrer, sem apressar as coisas. Já não quero pesar na balança, nem para um lado nem para o outro. Vou ficar inerte e neutro. Será Fácil. O que interessa é só prestar atenção aos sobressaltos. De resto tenho menos sobressaltos desde que aqui estou. Tenho ainda evidentemente acessos de impaciência de vez em quando. Disso é que tenho de me defender agora, durante quinze dias ou três semanas. Sem exagerar é claro, rindo e chorando sossegado, sem me exaltar. Sim, finalmente vou ser natural, sofrerei mais, e depois menos, sem tirar conclusões, ouvir-me-ei menos, não serei frio nem quente, serei morno, morrerei morno, sem entusiasmos. Não me verei morrer, isso falsearia tudo.
1ª Página do livro, Malone Está a Morrer, de Samuel Beckett, Edições Dom Quixote, 2ª edição, Maio de 2003.
Nota: Considerado um dos maiores escritores e dramaturgos do século XX, Samuel Beckett nasceu a 13 de Abril de 1906, na localidade de Foxrock, perto de Dublin, na Irlanda.
Nascido no seio de uma abastada família protestante, não teve uma infância muito feliz e depressa se tornou num jovem infeliz. Inadaptado às regras de uma sociedade que considerava repulsiva, refugia-se na solidão, que faz transparecer em toda a sua obra.
Em 1923 ingressa no Trinity College, de Dublin para fazer a sua formação académica, onde em 1927, se licenciou em línguas modernas, francês e italiano, com uma excelente classificação.
Em 1928, Beckett mudou-se para Paris, onde conheceu James Joyce, e depressa se tornou um seguidor do escritor. Esta amizade será decisiva para a sua carreira literária. Aos 23 anos, escreveu um ensaio em defesa de "Ulisses", a obra-prima de James Joyce, que tinha sido proibida na sua Irlanda natal.
Depois de um estudo sobre Proust, Samuel Beckett, chegou à conclusão que o hábito e a rotina eram o “cancro do tempo”: o tempo, inexorável, ao qual estamos presos. Samuel Beckett, faz questão de nos lembrar, que a cada momento, o fim se aproxima, que a morte espreita, que o jogo irá acabar e nós irremediavelmente, perderemos.
Se temos conhecimento disso, então por que continua-mos à espera? Porquê? Porque devemos saber que enquanto se espera a vida continua e devemos vive-la da melhor forma possível, a cada segundo, compreendendo-a pequena e grandiosa ao mesmo tempo.
Por causa destas conclusões, abandonou o seu cargo no Trinity College e iniciou uma viagem pela Europa, visitando a França, Inglaterra e a Alemanha, onde viveu as mais diversas experiências que depois se traduziram em personagens.
Em 1938 fixou residência em Paris, onde dois acontecimentos o vão marcar para o resto da vida: é gravemente ferido ao ser agredido por um estranho, que lhe desferiu uma facada no peito, e conhece Suzanne Deschevaux-Dusmenoil, o amor da sua vida e com quem se casaria em 1961.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Beckett permaneceu em Paris, onde lutou pela Resistência, até que alguns membros o seu grupo foram presos e Beckett foi forçado a refugiar-se, com a sua mulher na zona conhecida como "França Livre", a parte da França que não tinha sido ocupada, pelas tropas nazistas.
Em 1945, regressou a Paris e iniciou o seu período mais prolífico enquanto escritor. No período cinco anos, entre 1948 e 1953, produziu a sua obra mais significativa. Escreveu "Eleutheria" (1948), "À espera de Godot" (1952), e a trilogia, universalmente aclamada como essencial à compreensão da experiência humana, “Molloy” (1951), “Malone está a Morrer” (1951) e “O Inominável” (1953).
O seu primeiro sucesso, chegou, em 1952 com "À Espera de Godot". Apesar das especulações, a pequena peça onde nada acontece, tornou-se num sucesso repentino e um marco no teatro do absurdo. As personagens desta peça, exemplificam a situação do homem encurralado num mundo de rotina: dois vagabundos, Vladimir e Estrabon, indecisos e inertes, esperam em vão a chegada de um personagem enigmático e misterioso, Godot, símbolo do inalcançável, que de um modo inexplicável, melhorará as suas vidas.
Depois do sucesso de "À Espera de Godot", Samuel Beckett dedica-se a traduzir os seus textos para inglês e volta a escrever nesta língua, construindo, um caso raro na Literatura moderna, uma obra bilingue.
As obras de Beckett traduzem com um grande poder de síntese, toda a condição humana. As questões que são necessárias esclarecer dessa condição são amplamente trabalhadas e poeticamente materializadas. Os personagens das suas obras, reflectem a posição do autor em relação à vida, à morte, aos desejos, aos fracassos e à impossibilidade da felicidade.
O reconhecimento crescente do seu trabalho culminaria com o Prémio Nobel da Literatura, em 1969. Depois disso e apesar de ser aclamado a nível mundial, continuou a escrever até à sua morte, que ocorreu em Paris, a 22 de Dezembro de 1989, vítima de enfisema, contra o qual lutou nos últimos três anos, da sua vida.
publicado por armando ésse às 09:43

Maio 30 2008

Dá-me um café duplo, meu irmão.
Durante dezoito anos o seu espírito repetiu tantas vezes aquela frase, que as palavras acabaram por perder o significado na memória e no paladar, para soarem vazias, como uma palavra de ordem dita num idioma incompreensível. Porque, apesar do esquecimento que tentou impor a si próprio como a melhor alternativa, Fernando Terry sofreu demasiadas vezes aquelas rebeliões imprevisíveis da consciência e, com uma assiduidade incontrolável, dedicou alguns pensamentos ao que desejara sentir no preciso momento em que, depois de beber um café duplo em frente ao cabaret Las Vegas, acendesse um cigarro para atravessar a calle Infanta e descer pela Veinticinco, disposto a reencontrar-se com o melhor e com o pior do seu passado. Da melancolia ao ódio, da alegria à indiferença, do rancor ao alívio, nas suas viagens imaginárias Fernando tinha jogado com todas as cartas da nostalgia, sem pressentir que na manga escura, escondida, podia permanecer aquela tristeza agressiva que se lhe tinha cravado na alma, com uma interrogação: tinhas de voltar?
No início do seu exílio, durante os meses de incerteza vividos numa tenda asfixiante nos jardins do Orange Bowl de Miami, sem saber ainda se obteria a autorização de residência nos Estados Unidos, Fernando tinha começado a pensar num regresso curto mas necessário, que o ajudasse a estancar as feridas ainda sangrentas provocadas por uma traição demolidora e talvez, quem sabe, a curar a sensação vertiginosa de se achar descentrado, foro do tempo e do espaço. Depôs, com o passar dos anos e a persistência da barreira de leis e mediadas que dificultavam qualquer regresso, tinha tratado de se convencer de que o esquecimento era possível, de que podia acabar por ser o melhor dos remédios. Pouco a pouco começou a sentir o seu alívio benéfico e a ânsia do regresso foi-se diluindo até se transformar numa angústia adormecida que, astuciosamente, vinha à tona nalgumas noites insubornáveis quando, na solidão do seu sótão madrileno, o seu cérebro insistia em evocar algum instante dos seus trinta anos vividos na ilha.
1ª Página do livro, O Romance Da Minha Viva, de Leonardo Padura, Asa Editores, 1ª edição, Fevereiro de 2005.
Nota: Depois de dezoito anos de exílio, Fernando Terry decide voltar por algum tempo a Havana, atraído pela possibilidade de encontrar finalmente a autobiografia desaparecida do poeta José María Heredia, ao qual dedicou a sua tese de doutoramento. De passagem, terá oportunidade de esclarecer de uma vez por todas quem foi que o denunciou e provocou a sua expulsão da universidade. Paralelamente à história desse reencontro e à procura do almejado manuscrito, juntam-se, no plano narrativo, dois outros planos temporais: o da vida de Heredia, nos começos do século XIX, quando a ilha era ainda uma colónia, e o dos últimos dias do seu filho, José de Jesús de Heredia, um mação dos princípios do século XX.
Paulatinamente, as vidas dos vários personagens e as suas peripécias vão-se entretecendo em paralelismos inesperados, como se em Cuba a História se intrometesse sempre da mesma maneira no destino individual de todos aqueles que se destacam pelo seu talento: as delações, os exílios, as intrigas políticas acompanham sempre os criadores, seja qual for o período histórico em que lhes tenha caído em sorte viver.(Asa).
publicado por armando ésse às 15:17

Maio 30 2008

Dá-me um café duplo, meu irmão.
Durante dezoito anos o seu espírito repetiu tantas vezes aquela frase, que as palavras acabaram por perder o significado na memória e no paladar, para soarem vazias, como uma palavra de ordem dita num idioma incompreensível. Porque, apesar do esquecimento que tentou impor a si próprio como a melhor alternativa, Fernando Terry sofreu demasiadas vezes aquelas rebeliões imprevisíveis da consciência e, com uma assiduidade incontrolável, dedicou alguns pensamentos ao que desejara sentir no preciso momento em que, depois de beber um café duplo em frente ao cabaret Las Vegas, acendesse um cigarro para atravessar a calle Infanta e descer pela Veinticinco, disposto a reencontrar-se com o melhor e com o pior do seu passado. Da melancolia ao ódio, da alegria à indiferença, do rancor ao alívio, nas suas viagens imaginárias Fernando tinha jogado com todas as cartas da nostalgia, sem pressentir que na manga escura, escondida, podia permanecer aquela tristeza agressiva que se lhe tinha cravado na alma, com uma interrogação: tinhas de voltar?
No início do seu exílio, durante os meses de incerteza vividos numa tenda asfixiante nos jardins do Orange Bowl de Miami, sem saber ainda se obteria a autorização de residência nos Estados Unidos, Fernando tinha começado a pensar num regresso curto mas necessário, que o ajudasse a estancar as feridas ainda sangrentas provocadas por uma traição demolidora e talvez, quem sabe, a curar a sensação vertiginosa de se achar descentrado, foro do tempo e do espaço. Depôs, com o passar dos anos e a persistência da barreira de leis e mediadas que dificultavam qualquer regresso, tinha tratado de se convencer de que o esquecimento era possível, de que podia acabar por ser o melhor dos remédios. Pouco a pouco começou a sentir o seu alívio benéfico e a ânsia do regresso foi-se diluindo até se transformar numa angústia adormecida que, astuciosamente, vinha à tona nalgumas noites insubornáveis quando, na solidão do seu sótão madrileno, o seu cérebro insistia em evocar algum instante dos seus trinta anos vividos na ilha.
1ª Página do livro, O Romance Da Minha Viva, de Leonardo Padura, Asa Editores, 1ª edição, Fevereiro de 2005.
Nota: Depois de dezoito anos de exílio, Fernando Terry decide voltar por algum tempo a Havana, atraído pela possibilidade de encontrar finalmente a autobiografia desaparecida do poeta José María Heredia, ao qual dedicou a sua tese de doutoramento. De passagem, terá oportunidade de esclarecer de uma vez por todas quem foi que o denunciou e provocou a sua expulsão da universidade. Paralelamente à história desse reencontro e à procura do almejado manuscrito, juntam-se, no plano narrativo, dois outros planos temporais: o da vida de Heredia, nos começos do século XIX, quando a ilha era ainda uma colónia, e o dos últimos dias do seu filho, José de Jesús de Heredia, um mação dos princípios do século XX.
Paulatinamente, as vidas dos vários personagens e as suas peripécias vão-se entretecendo em paralelismos inesperados, como se em Cuba a História se intrometesse sempre da mesma maneira no destino individual de todos aqueles que se destacam pelo seu talento: as delações, os exílios, as intrigas políticas acompanham sempre os criadores, seja qual for o período histórico em que lhes tenha caído em sorte viver.(Asa).
publicado por armando ésse às 15:17

Maio 29 2008

O garoto de cabelo cor-de-mel agachou-se, deixou-se escorregar ao longo do último troço do rochedo e encaminhou-se para a lagoa. Embora tivesse tirado o blusão, parte do seu uniforme escolar, e o arrastasse agora pela mão, a camisa cinzenta colava-se à pele e o cabelo encodeava-se-lhe na testa. À sua volta, a funda clareira rasgada na selva era um banho de calor. Rompia pesadamente por entre as lianas e os troncos quebrados, quando um pássaro, uma visão de vermelho e amarelo, cintilou numa fuga para o alto com um grito de feitiço. A este grito o eco respondeu com outro.
-Eh! – disse uma voz. – Espera um momento!
O matagal, num dos bordos da clareira, agitou-se e uma saraivada de gotas de água caiu com estridor.
-Espera um momento – repetia a voz. – Estou aqui preso.
O garoto de cabelo cor-de-mel abaixou-se e repuxou as peúgas com um gesto automático que fez com que a selva por um momento se parecesse com os condados ingleses.
A voz ouvia-se de novo.
-Nem me posso mexer com todas estas trepadeiras.
O dono da voz emergiu, esbracejando com o restolho alto, de modo que os ramalhos vibraram contra uma pala sebenta. As rótulas nuas dos joelhos eram grossas e tinham sido apanhadas e arranhadas por espinhos. Debruçou-se, tirou cuidadosamente os espinhos e voltou-se. Era mais baixo que o garoto louro e muito gordo. Adiantou-se, buscando piso seguro para os pés, e olhou então através dos óculos de lentes grossas.
1ª Página do livro, O Deus das Moscas, de William Golding, Vega, 1º edição, 1997.

Nota: William Golding (1911-1993), romancista inglês, Prémio Nobel em 1983, nasceu na Cornualha e cursou a Universidade de Oxford, dedicando-se ao estudo da Literatura inglesa. Professor, abandonou a profissão durante a II Grande Guerra, tendo servido na Royal Navy.Depois da Guerra, Golding deu-se à escrita.0 seu primeiro romance, em 1954, O Deus das Moscas (filme de Peter Brook em 1963), foi um sucesso, tendo a crítica internacional considerado a obra como uma das maiores do século XX. Depois deste seu primeiro título (traduzido em todo o mundo culto), Golding escreveu ainda Os Herdeiros (1955), Pincher Martin (1956), Borboleta de Latão (1958) e Queda Livre (1959).Outras obras: Rites of Passage (1980), Close Quarters (1987) e Fire Down Below (1989). Estes romances constituem uma trilogia galardoada com o Booker Prize. Assunto da trilogia: dilemas morais e reacções humanas em situações limite. O mar e a navegação são presenças constantes na sua escrita.Escreveu também vários ensaios - e o seu último romance, The Double Tongue, foi publicado postumamente em 1995. Em 88, foi elevado ao grau de Cavaleiro, juntando ao seu nome o título de Sir. (Vega).
publicado por armando ésse às 14:38

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